Somos homens, feitos da mesma matéria cuja alma se lança além do tempo

Somos homens, feitos da mesma matéria cuja alma se lança além do tempo

Pois dizer que Cristo, sendo Deus, não foi homem,
e que, sendo homem, não foi Deus, é retirar do próprio homem
a possibilidade de ser Deus, é incompletá-lo na definição
de sua hominidade, é negar à humanidade toda transcendência,
é deixar o Espírito com a brocha na mão, sobre sua escada
(para usarmos uma linguagem mundana, mal amassada),

é nos transformar em autômatos, mecânicos, mera relojoaria,
na qual engrenagens que nasceram do nada subitamente ganham vida,
e se põem a pensar na sua origem, e concebem um relojoeiro
à sua imagem, à exceção dos ponteiros, que apontam a eternidade,
o não-tempo, seja contado em cataratas de anos, como as gotas do oceano,
seja concebido como um refúgio além das eras, dos éons e de todo número,

se Cristo não foi Deus, tampouco terá sido homem, e nem homens somos nós,
os que, como ele, fomos concebidos antes ainda da criação,
antes da luz, que lançaria seu brilho e sua sombra sobre o tempo e o espaço,
na forma de um homem, que caminhou na terra e na cruz foi fixado,
ele, Cristo, homem, que nos legou a capacidade de sermos o contramolde
de tudo o que foi criado, e que para tanto nos deu um cérebro e um coração

do tamanho exato das galáxias, dos sóis, das estrelas que nascem e morrem
a todo instante, dos dinossauros que contemplamos compassivos
com seu destino de gigantes, de todos os macacos que vieram antes,
e das riquezas ocultas sob o solo, e aquelas que jazem nas luas que sonhamos,
que vemos pelos telescópios que inventamos, e que giram
segundo as equações que deduzimos nas noites insones de gênios pânicos,
a anotarem em papel amarelado tudo o que pensaram, nós,

que escrevemos nosso próprio gênesis e que nomeamos novos Adão
a cada palmo escavado, e uma Eva a cada giro gênico, e Caims e Abéis
ao sabor da história de nômades e sedentários, esse antiquíssimo testamento
que se lança de uma noite profunda, jazente entre camadas de rocha e barro,
e chega até nós, que contemplamos as estrelas, tão familiares,
embora rastejemos na sarjeta da nossa individualidade, sem percebermos
o quão universal é a pessoa humana, sem nos darmos conta de que,
pelo fato simples de as chamarmos estrelas, átomos, partículas, gases,
ou o que for, as temos e possuímos previamente em nossa composição fundamental,

somos homens, feitos da mesma matéria, cuja alma se lança além do tempo
e do espaço para saudar a Ti, ó Deus, que nos tiraste (como se fosse) do nada,
e nos destes essa forma crística, como a chamaste, a nós, filhos
dessa mesma realidade, que é uma só conosco, e só por isso, reafirmamos
(porque, mais do que a fé, nos diz a lógica), que, sendo Deus, Cristo foi homem,
e, tendo homem sido, Deus foi, e o somos, sendo em tudo, a ele,
ao Deus e ao homem, assemelhados, semelhantes, parecidos.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

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