Há algum tempo, eu comecei uma série de artigos chamados “Sombras de Nsanda em Piracicaba,” série que será dividida em três partes, a primeira já publicada no Diário de Engenho como subtítulo “dos escravizados e a cidade”. Naquele texto, eu descrevo um pouco o desenvolvimento da cidade de Piracicaba no contexto da expansão açucareira no começo do século XIX, bem como também o estado de arte da escravidão no Centro-sul do Brasil.
O texto que se segue é uma adaptação de uma pesquisa de iniciação científica que eu orientei junto à minha querida e estimada aluna Cínthia Simões de Souza – no curso de história da Unimep. O objetivo dessa série de textos é conhecer, compreender e explicar a (r)existência de tradições africanas em Piracicaba tendo como fundamento FONTES PRIMÁRIAS. Essas fontes são, sobretudo, sumários crimes, arquivados no Centro Cultural Martha Watts, que envolviam escravizados no período que vai de 1820 a 1850.
Sabemos que a história é a história dos vencedores e que quase todos monumentos são monumentos à barbárie, mas o que seria da humanidade se não houvesse resistências, convergências estratégicas e mesmo subversões das ordens que vem do andar de cima? Assim, é a partir de uma leitura a contrapelo desses documentos que podemos entrever uma outra Piracicaba. Esses documentos permitem compreender e analisar de que forma essas tradições culturais africanas foram percebidas, vividas e representadas por escravizados, pessoas livres e autoridades da cidade de Piracicaba através de uma leitura a contrapelo do mesmo.
Assim, é contando a história nas entrelinhas desses documentos que podemos fazer justiça à memória de tantas pessoas fadadas ao esquecimento. A primeira história é referente a Lourenço, escravizado de José Caetano Rosa e está arquivada na caixa 6/A do grupo 1º ofício-civil, sendo um documento de devassa ex-oficio. Segundo Torres, em seu livro Aspectos da evolução da propriedade rural em Piracicaba, José Caetano Rosa era um senhor de engenho que tinha sua propriedade localizada no quinto Quarteirão em Vila Nova da Constituição (Piracicaba).
Segundo dados da Câmara de Vereadores de Piracicaba, Alferes José Caetano Rosa era de naturalidade portuguesa e foi advogado e agricultor, além de ter atuado na câmara como vereador e seu presidente. Na documentação do censo de 1822, ele aparece como proprietário de engenho de cana, possuindo duas dúzias de escravizados e uma produção avaliada em 930 mil réis.
Em maio de 1824, Lourenço é encontrado morto, assassinado por um “ferro perfurante”. O documento traz, em detalhes, a situação em que o corpo de Lourenço foi encontrado. O cadáver se achava cheio de feridas e havia nele duas estocadas profundas, uma no ombro e outra no peito feitas por um “instrumento perfurante”. José Caetano informou que, no dia anterior ao ocorrido, Lourenço tinha saído para a roça e não havia voltado, sendo logo após, achado morto a pancadas por “negros fugitivos”. Várias testemunhas dizem que os assassinos foram “negros fugitivos”, porém, não fica muito claro, pelas informações contidas no documento, como que chegaram a essa conclusão, já que a informação que ele traz a respeito é a de que foram encontrados “instrumentos de tirar fogo” no local e sinais de que foram usados para produzir fogo.
Na época, a palavra fogo também era utilizada para se referir a domicílio, mas no caso, é mais provável que o significado seja o atual para fogo, pois encontraram vestígios no local dos instrumentos utilizados para a produção de fogo. O assassinato pode ter ocorrido no fim da tarde e, com o cair da noite, os escravizados podem ter permanecido no local até o amanhecer.
Uma das testemunhas ouvidas foi Feliciano, outro escravo de José Caetano. Feliciano é descrito como mulato, tendo 30 anos e como sendo natural da Vila de São Vicente Ferreira. Em seu testemunho diz que Lourenço foi morto por negros quilombolas, por terem achado no local “pauzinhos de tirar fogo” e ter rastros dos mesmos quilombolas, que teriam partido em direção do morro sul.
Francisco Barreto, homem casado, 50 anos, que vivia do ofício de ferreiro, disse ter ouvido que os negros fugidos, onde andava um de nome “guarantã”, foram os que mataram Lourenço, pois no local foram encontrados “paus de tirar fogo”. O relato das outras testemunhas são bem semelhantes, no que diz respeito às informações. O interessante é que, em todos os testemunhos, as pessoas dizem que sabem, ou que ouviram dizer, que Lourenço foi assassinado por “escravos fugidos” ou “negros quilombolas”, devido à presença de “paus de tirar fogo” no local. Somente Francisco alude ao nome do negro Guarantã, como um dos envolvidos com o assassinato.
Com esse documento é possível fazer algumas reflexões. A primeira é o modo como as pessoas se referiam aos escravos que haviam fugido, chamando-os de “negros fugitivos” ou “negros quilombolas”. Somente pela forma como os chamavam não é possível identificar se eram escravizados que tinham fugido a pouco tempo e que ainda não tinham local fixo para permanecer, ou se já pertenciam a um quilombo ou alguma comunidade de escravizados fugitivos.
Outro ponto seria o fato de existir uma rede de comunicação entre os escravizados, pois Feliciano, também escravo do mesmo senhor, em seu testemunho, descreve a situação do local do assassinato, podendo ele ter visto com seus próprios olhos ou ter ouvido essa informação de algum outro escravo. As outras pessoas que testemunharam e que revelaram saber que Lourenço havia sido morto por “negros fugitivos” por terem ouvido dizer, permite nos levar a pensar que essa notícia também poderia ter sido propagada pelos próprios escravizados, pois o testemunho de Feliciano é o mais detalhado entre todos, vindo em primeiro lugar, podendo ter sido até ele o responsável pela fonte da informação.
(continua).
Rafael Gonzaga é historiador e doutor em história social.