Sobre o natal na literatura e o “Natal” do Pessoa

Sobre o natal na literatura e o “Natal” do Pessoa

O natal sempre foi tema dos mais visitados na literatura. Talvez, de alguma forma, possamos dizer que até mesmo a própria ideia de natal enquanto evento social (não exatamente religioso e de caráter europeu) ao qual se associa diretamente um encontro familiar em torno de uma mesa vasta repleta de comidas e bebidas servidas à luz da lareira que contrasta com a neve que cai do lado de fora tem expressivo impulso em sua veiculação mundo afora por meio da literatura – e de histórias como as de Charles Dickens (como o “Conto de Natal”, por exemplo) ou mesmo a trágica “A Menina que Vendia Fósforos”, de Hans Christian Andersen, dentre outras.  Em ambos os casos, vale dizer – no entanto – que a cena natalina descrita parece praticamente esquecida da celebração cristã – tornando-se o nascimento do Cristo, se muito, mero pretexto para que uma reunião festiva ao pé da lareira possa aquecer corpos e corações, criando momentos de conforto e união que tem como um de seus objetivos centrais amenizar a crueza e a dureza do inverno.

Não à toa, o modelo de natal que nos chega é exatamente o do “natal branco” europeu de fins do século XIX começo do XX – e suas tradições, mitos e costumes ganham impulso na literatura e, claro, na publicidade (como a que nos lega, via Coca Cola, um Papai Noel de vestes vermelhas, barba branca e botas pretas – hoje tão nacionalmente odiado pela extrema direita, capazes que foram, inclusive, de recriar um Papai Noel com vestes douradas – como aconteceu este ano em uma cidade no sul do país). Fato é que, agradando ou não a gregos e baianos, recolhendo e unindo tradições de culturas distintas (sejam nórdicas, romanas, cristãs, pagãs e tantas outras) foi na literatura que o conjunto dessa simbologia natalina, ao que parece, ganhou unidade e força de expressão capaz de influenciar e comover pessoas dentro e fora da Europa.

No Brasil, por exemplo, do lado de cá do Atlântico e a seu modo, escritores do século XX (como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade e Vinícius de Moraes, só para citar alguns) se irmanaram também ao apelo lírico da temática natalina e deixaram para a história crônicas, contos e poemas ambientados no natal brasileiro. O lindo poema “Papai Noel às Avessas”, de Carlos Drummond de Andrade, por exemplo, inverte os costumes e nos brinda com um Papai Noel que não traz presentes, mas os leva embora das casas.

Papai Noel entrou pela porta dos fundos
(no Brasil as chaminés não são praticáveis),
entrou cauteloso que nem marido depois da farra.
Tateando na escuridão torceu o comutador
e a eletricidade bateu nas coisas resignadas,
coisas que continuavam coisas no mistério do Natal.
Papai Noel explorou a cozinha com olhos espertos,
achou um queijo e comeu.

Depois tirou do bolso um cigarro que não quis acender.
Teve medo talvez de pegar fogo nas barbas postiças
(no Brasil os Papai-Noéis são todos de cara raspada)
e avançou pelo corredor branco de luar.
Aquele quarto é o das crianças
Papai entrou compenetrado.

Os meninos dormiam sonhando outros natais muito mais lindos
mas os sapatos deles estavam cheinhos de brinquedos
soldados mulheres elefantes navios
e um presidente de república de celulóide.

Papai Noel agachou-se e recolheu aquilo tudo
no interminável lenço vermelho de alcobaça.
Fez a trouxa e deu o nó, mas apertou tanto
que lá dentro mulheres elefantes soldados presidente brigavam por causa do aperto.

Os pequenos continuavam dormindo.

Longe um galo comunicou o nascimento de Cristo.
Papai Noel voltou de manso para a cozinha,
apagou a luz, saiu pela porta dos fundos.

Na horta, o luar de Natal abençoava os legumes.

Vinícius – esse sim (curiosamente talvez o mais mundano e ao mesmo tempo mais espiritualista dentre os autores aqui citados) recoloca a imagem de Cristo no centro de seus textos sobre o natal e nos faz refletir sobre a existência, sobre menino Deus e sobre a nossa própria essência humana – como no “Poema de Natal” e no singelo poema “Natal”:

De repente o sol raiou

E o galo cocoricou:

– Cristo nasceu!

O boi, no campo perdido

Soltou um longo mugido:

– Aonde? Aonde?

Com seu balido tremido

Ligeiro diz o cordeiro:

– Em Belém! Em Belém!

Eis senão quando, num zurro

Se ouve a risada do burro:

– Foi sim que eu estava lá!

E o papagaio que é gira

Pôs-se a falar: – É mentira!

Os bichos de pena, em bando

Reclamaram protestando.

O pombal todo arrulhava:

– Cruz credo! Cruz credo!

Brava

A arara a gritar começa:

– Mentira! Arara. Ora essa!

– Cristo nasceu! Canta o galo.

– Aonde? pergunta o boi.

– Num estábulo! – o cavalo

Contente rincha onde foi.

Bale o cordeiro também:

– Em Belém! Mé! Em Belém!

E os bichos todos pegaram

O papagaio caturra

E de raiva lhe aplicaram

Uma grandíssima surra.

Em Portugal – ora, pois – ninguém menos que Fernando Pessoa também verteu versos sobre o natal e, claro, sobre a mística (ora ingênua, ora oculta) que o envolve. Publicado em 1922, na revista modernista “Contemporânea”, o poema “Natal”, do ortônimo Fernando Pessoa é com certeza um dos mais conhecidos. Evidentemente afastado de qualquer convencionalismo natalino, esse poema “desassossega” o natal, desmonta a esperança, aprofunda o mistério do mundo e, de quebra, refuta a fé banalizada e automática que impera nesses tempos (e nos demais também). De aparência imediatamente “antinatalina”, talvez esse poema de Pessoa seja, ao fim e ao cabo, justamente seu poema mais natalino (no puro sentido da palavra) – uma vez que busca, na profundeza dos mistérios ocultos, a espiritualidade mística dos grandes iniciados – como ele.  E se o poeta assim quer, que assim seja e aqui esteja para leitura e deleite:

 

Natal

Nasce um Deus. Outros morrem. A verdade

Nem veio nem se foi: o Erro mudou.

Temos agora uma outra Eternidade,

E era sempre melhor o que passou.

Cega, a Ciência a inútil gleba lavra.

Louca, a Fé vive o sonho do seu culto.

Um novo deus é só uma palavra.

Não procures nem creias: tudo é oculto.

 

Parece evidente que entre a cega ciência e a louca fé, melhor é ficar com a força mística da palavra e a beleza da poesia. Que o oculto, por ser oculto, sempre é mais interessante – e bonito.

 


Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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