No contemporâneo parece haver, para determinados cristãos, uma maneira bastante distorcida de se viver o discipulado de Jesus. Parcela significativa de cristãos tem assumido, sem nenhum pudor e constrangimento, a defesa de princípios diametralmente opostos daqueles transmitidos na dinâmica original do movimento de Jesus. Talvez a fonte de tamanha confusão esteja na fragilidade das compreensões fundamentalistas, teologicamente carentes tanto de uma exegese minimamente rigorosa quanto de uma hermenêutica mais crítica e fundamentada.
Tudo isso não é novo. A questão é que enquanto a fé estava restrita ao âmbito privado, definindo a dimensão moral da vida de cada crente, a sociedade não tinha a percepção dos dilemas de um cristianismo tão pós-moderno, alicerçado em pós-verdades, talvez. O fundamentalismo religioso, em uma dinâmica de expansão para a vida pública, passou a ascender à esfera da política governamental, vislumbrando alcançar um outro patamar à difusão de normas e valores morais. Em uma espécie de teocracia desfigurada, ser reconhecido como representante deste fundamentalismo cristão passou a render espaços de poder político, sendo contemplado com milhares de votos.
A fidelidade aos princípios basilares do movimento de Jesus é um desafio permanente às igrejas cristãs, na medida em que pleiteiam se apresentar como depositárias da fé e herdeiras do testemunho apostólico. É importante destacar que a mensagem cristã não tergiversa ao ressaltar a centralidade do primado do amor e do serviço ao próximo, em uma vida pautada na comunhão fraterna, compondo uma dinâmica social capaz de suplantar todas as formas de opressão e exploração. Amor, perdão, compaixão, ascese, espiritualidade, abnegação, fraternidade, justiça, direito, paz são princípios fundamentais no compêndio ético do discípulo de Jesus.
É possível que alguém seja considerado como representante do cristianismo mesmo que demonstre tamanho desprezo aos ensinamentos do próprio Jesus Cristo? Há uma clara e gritante contradição em tudo isso. Evidenciam-se ao menos dois grandes equívocos que vêm se desenhando na opção política de parte significativa dos cristãos. O primeiro equívoco aparece na estarrecedora contradição de se apoiar projetos políticos que se situam em flagrante oposição ao conteúdo da mensagem cristã. Já o segundo equívoco descortina-se na estratégia de buscar o poder política, por meio da sustentação de lideranças que não se revelam comprometidas com os princípios básicos da ética do amor e do serviço. O grande drama cristão consiste em ponderar até que ponto a ascensão à esfera do poder pode representar o esvaziamento do sentido do querigma, o anúncio da verdade cristã.
O primeiro equívoco consiste no fato de que os projetos governamentais, marcados por escandalosa insensibilidade social, inflamada aversão aos direitos humanos e famigerados preconceitos não guardam, em absoluto, nenhum vínculo com a cosmovisão cristã. O segundo equívoco encontra-se no erro de avaliação política, ao entender que o atual governo seria um representante cristão no poder. Para o grupo que está alocado no poder – com suas pautas que fazem apologia à violência, antidemocráticas e alheias às demandas do povo – a voz profética dos cristãos, se coerente com o legado do movimento de Jesus, não será ouvida, pois não há espaço para se edificar um projeto de sociedade sob inspiração cristã. Associar sua missão a este governo talvez seja o grande equívoco dos cristãos.
A fonte de toda mensagem cristã é o testemunho dos apóstolos, relatado fidedignamente na tradição do Novo Testamento. Cabe à teologia apresentar as chaves interpretativas da revelação cristã. O problema é que a leitura fundamentalista não consegue alcançar a radicalidade da verdade anunciada por Jesus. Para além de interdições no campo moral, o cristianismo representa um projeto ético transcendental de vida e sociedade, pautado no primado da justiça, do amor e da paz.
Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, professor do Instituto Federal campus Piracicaba e um dos editores do Diário do Engenho.
Parabéns, prof. Adelino pela produção deste belo texto!
Analise Perfeita. Esse tipo de observação, talvez seja muito mais eficaz do que proposituras partidárias. Parabéns Mestre Adelino.