A Bahia tem um jeito,
Que nenhuma outra terra tem!
Dorival Caymmi
Acontecer de eu ser gente
E gente é outra alegria.
Caetano Veloso
As epígrafes em tela remetem a duas ideias geradoras: sobre a força original e criativa da cultura brasileira e sobre a beleza que é ser gente. Há uma tensão dialética entre essas duas ideias. Das potencialidades humanas – da beleza de ser gente – brota a cultura, que por sua vez constrói novos horizontes ao humano. A crise civilizacional, que assola o contemporâneo, guarda uma relação profunda entre concepções de cultura e de humanidade. Em um fundamentalismo estéril, há aqueles que insistem em reduzir, conter o humano, enclausurando-o em uma visão estática e fechada de cultura. Mas o humano manifesta uma vontade de potência, uma força vital, um ímpeto criativo, que se expande em diversidades, em inusitadas perspectivas culturais. É como um rio em movimento, que não pode ser contido.
No movimento da cultura, o Código de Hamurab, da antiga Babilônia, registrado pela escrita cuneiforme, estabelecia, como uma de suas balizas de conduta, o princípio do olho por olho, dente por dente. Essa perspectiva moral reativa foi suplantada pela ética cristã, sintetizada no primado do amor. A própria ideia de civilização ocidental tem no legado da tradição cristã suas referências mais fundamentais. Por mais que o mundo contemporâneo não consiga traduzir o mandamento do amor em suas estruturas socioeconômicas e nem no âmbito das relações mais cotidianas, esse princípio permanece radicado no inconsciente coletivo, como referência crítica e critério de discernimento.
Propagar, de maneira aberta e deliberada, o princípio do olho por olho, dente por dente, não é apenas disseminar o ódio – que por si só já seria algo de extrema gravidade –, é também, e sobretudo, atentar contra os pilares civilizacionais. As proposições fascistas não podem ser toleradas, justamente por se colocarem contra as bases civilizacionais, consolidadas no mundo moderno no princípio do Estado democrático de direito.
A enfática e contundente afirmação de que o fascismo deve ser duramente combatido pode gerar, à primeira vista, uma percepção de algo antidemocrático. Mas o fato é que não se pode tergiversar sobre um problema tão grave, que pode alcançar proporções difíceis de serem contidas. É isso que a história ensina. A tolerância deve sempre assumir uma perspectiva libertária. Tudo que produz opressões, em qualquer sentido, não pode ser tolerado. Esse pode ser um bom critério, para reposicionarmos, por exemplo, a noção de liberdade de expressão. Em uma sociedade democrática não há espaço para manifestações que aviltam, em qualquer sentido, a dignidade do outro.
É importante dizer que há um movimento de ascensão da extrema direita em âmbito global, que sem receios passa a explicitar o ódio ao pobre, ao negro, ao indígena, à mulher, ao imigrante, ao homoafetivo. Todos caracterizados como o outro, como o diferente, o estranho, o diverso, o sem dignidade. É estratégia do fascismo, em um processo de reificação, desfigurar o outro, desvinculá-lo de humanidade, reduzindo-o à condição abjeta de um não humano, o não ser.
A barbárie ganha visibilidade tanto nos discursos quanto nas práticas fascistas, a vislumbrarem a irracionalidade da redução do humano como algoz de seu semelhante – homo homini lupus. Em última análise, o capitalismo neoliberal, com sua ideologia do mercado, é a instância emblemática, que congrega e representa o fascismo. Em conjunturas específicas, esse fascismo aparece personificado em determinadas figuras políticas. No contexto da eleição no Brasil, apesar do acento fascista de um candidato em particular, o projeto fascista do mercado está plenamente contemplado em tantos outros candidatos – autênticos lobos, em pele de cordeiro. Assim, o que se coloca em questão, no atual momento de disputa eleitoral, pode ser explicitado pela antinomia civilização ou barbárie.
Contra a barbárie levante-se o processo dinâmico de elaboração e sofisticação cultural, colocando em movimento os princípios civilizacionais. Neste ponto, a generosidade da cultura brasileira, com suas múltiplas representações, de norte a sul do país, carrega em si as condições fundamentais para suplantar, em definitivo, a loucura da barbárie, representada no princípio do olho por olho, dente por dente. Em todos os cantos do Brasil, como uma autêntica epifania, desponta a ética da generosidade solidária. A cultura brasileira é uma força que contagia, dizendo sim à vida, livre de todo ressentimento. Com tanta diversidade – no plano étnico, cultural, religioso – definitivamente não há espaço para posturas fascistas, seja no plano econômico ou mesmo de uma moral hipocritamente desfigurada.
Em torno do projeto fascista se alinham os candidatos representantes do grande capital e todos que insistem em idolatrar o deus mercado, colocando-se em direta oposição aos interesses do povo, defendendo reformas que se levantam contra a dignidade das pessoas, a partir de uma absurda concepção de austeridade econômica.
Mas a esperança vem sempre dos pobres, da força do povo – essa narrativa contempla, inclusive, origens remotas, desde os tempos do êxodo de Moisés. É a força transformadora dos fracos. Da impulsividade criativa da cultura popular brotam os sinais de resistência e os caminhos para se recompor a humanidade perdida.
O Caruru, do sincretismo baiano, na gratuidade da oferenda, do encontro e da festa, ensina um outro ritmo de vida, radicada em outra economia. É a ética da generosidade solidária, a se expressar no cotidiano das relações, ganhando corpo e movimento. A dádiva do comer junto, de forma livre, gratuita e desinteressada, em uma grande celebração ritual, aponta a solidariedade como critério ética para as relações.
No momento mais escuro, no qual o fascismo mostra sua tenebrosa face, na lunática tentativa de obliterar a ética do amor como princípio civilizacional, o Nordeste – com suas tradições mais genuínas e sua humanidade que pulsa – pode resgatar o Brasil. Esse é o destino manifesto de todas as expressões da cultura brasileira, em suas múltiplas representações regionais. A esperança viceja onde tudo parece faltar. Na dúvida, o caminho é sempre se colocar ao lado dos pobres, no campo democrático, na defesa intransigente da justiça. No final, quem decide é a favela – aqui se funda a esperança.
Adelino Francisco de Oliveira é filosofo, doutor pela Universidade Católica de Braga – Portugal – e professor do Instituto Federal de São Paulo campus Capivari.