por Jean Goldenbaum
Amigxs não judeus/judias sempre me perguntam qual é o significado das festas judaicas. Uma vez que neste exato momento estamos vivenciando a festa de Pessach, a Páscoa judaica, que coincide (não tão coincidentemente) com a Páscoa cristã, tentarei de maneira sucinta explicar um pouco sobre o assunto.
Muito bem, Pessach é a festa em que judias e judeus de todo o mundo comemoram a conquista da Liberdade diante da escravidão sob a qual o povo vivia no Egito. Estamos falando de relatos bíblicos, esta história é tratada no segundo livro da Torah (a primeira parte da Bíblia Judaica), e este evento teria ocorrido a cerca de 3500 anos, ou seja por volta do ano 1500 antes da era comum.
Segundo o conto, o povo judeu vinha sendo escravizado pelo Faraó havia séculos, e o líder Moisés a muito custo conseguiu libertá-lo e conduzi-lo de volta à sua terra natal, na região atual de Israel e Palestina. Desta forma, esta festividade é tida como uma celebração à Liberdade. Há diversos rituais, simbolismos, canções, comidas específicas (incluindo o matzah, o pão ázimo), muitas preces e as tradicionais contações de histórias. A festa dura oito dias e é muito bonita, com cada corrente do Judaísmo – dos mais ortodoxos aos mais progressistas (e até judeus ateus) – comemorando às suas maneiras, todas elas legítimas.
Três milênios e meio após o avanço do povo judeu à Liberdade, hoje chegamos no ano de 2020 (ou, no calendário judaico, 5780) com mais semelhanças à época de Moisés do que em outros anos. Vamos dar uma olhada? Ainda de acordo com a narrativa bíblica, naquela época Deus enviou pragas ao mundo (lembrando que a escrita bíblica é muitas vezes metafórica, alegórica, simbólica), em meio ao embate entre Liberdade e Escravidão, Oprimidos e Opressores. Hoje vemos o mundo passar por uma das mais terríveis pragas dos últimos cem anos, que computa já mais de cem mil mortes.
Outra semelhança é a imagem atual de “Faraós” controlando alguns países do mundo, colocando-se acima do Bem e do Mal, acima de qualquer Conhecimento, acima da Democracia, acima dos Direitos Humanos. E, logicamente, estes contam com o apoio de milhões de cegos seguidores – o chamado “gado” – que os endeusam, exatamente como ocorria com Faraó, que era visto como a própria encarnação de Deus.
Querem ver outra incrível semelhança? Na Bíblia, quando Deus começa a impor as pragas, a postura de Faraó é desacreditar, renegar a gravidade destas. Semelhante com alguém no Brasil? Faraó então só reconhece que a questão é séria quando seu próprio filho é vítima fatal da ira de Deus. Me pergunto se o “presidente” brasileiro mudaria sua postura nesta situação… Bem, se seu filho fosse gay, seria melhor morrer de qualquer forma, segundo suas próprias palavras, não?…
Enfim, cabe ainda explicar às/aos amigxs a respeito da ligação da Páscoa cristã e o Pessach. Muito bem, é bastante simples. Praticamente todas as comemorações cristãs possuem ligação direta com as judaicas, afinal o Cristianismo veio do Judaísmo, e o próprio Jesus era judeu. Inclusive, o termo Páscoa, passando pelo aramaico, depois pelo grego, e finalmente pelo latim, deriva-se da palavra Pessach, que significa algo como “passagem sobre” (uma menção a uma parte do conto bíblico em que Deus “passa sobre” lares judaicos, poupando estes de suas derradeiras punições). Assim, a Santa Ceia de Jesus, que era um judeu observante, nada mais era do que o jantar da primeira noite de Pessach, com vinho, pão ázimo etc). Por isso cristãs e cristãos comemoram a morte e a ressurreição de Jesus na mesma época do Pessach.
Aqui é essencial lembrarmos que Jesus, em sua época, assim como Moisés 1500 anos antes, também lutava pela Liberdade e contra o opressor, no caso o Império Romano e seus apoiadores. Sim, Jesus, ao que nos demonstra a narrativa bíblica, era – em minha opinião enquanto judeu – um cara nota dez, progressista, preocupado com Justiça Social e Igualdade. Meus amigos cristãos – alguns religiosos, observantes, sejam católicos ou protestantes – sempre me relatam como hoje em dia se envergonham deste “pseudo-cristianismo-neopentecostal-enlatado norteamericano-bolsonarista-trumpista-fascista” que quer falar em nome de Jesus e na realidade fala plenamente o contrário do que pregava o líder galileu. Afinal, ele pregava o Amor, e não o Ódio.
Pois bem, amigxs, é fácil vermos como, de certa forma, o ser humano não se desenvolveu em nada desde que o mundo é mundo, não? Os mesmos erros, o mesmo ódio, a mesma opressão de sempre, continua a existir entre nós. Felizmente, continuam também a existir entre nós os que lutam contra tudo isso. Os Moisés, os Jesus, e tantos outros homens e mulheres anônimos que dedicam seu tempo, sua energia, suas vidas, em nome da Liberdade, da Igualdade, da Tolerância, dos Direitos Humanos – cada um de acordo com o seu tempo, o seu modus vivendi, o seu Zeitgeist, é claro.
Sem mais me estender, desejo a todxs xs amigxs judias e judeus e a todxs xs amigxs cristãs e cristãos, felizes festividades, repletas de Esperança de que o Fascismo no Brasil será derrotado em algum momento. E que a Liberdade representada pelo Pessach e a Ressurreição representada pela Páscoa, possam ascender, fazendo com que o Ódio seja sufocado pelo Amor. Abraços.
Jean Goldenbaum é compositor e doutor em Musicologia, professor e pesquisador no ‘Centro Europeu de Música Judaica’ da ‘Universidade de Música de Hanôver’, Alemanha. É fundador do coletivo ‘Judias e judeus com Lula’, membro do ‘Resistência Democrática Judaica’ e membro-fundador do ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’. Vive em Hanôver com sua esposa Paola e seu cão Jake.
Imagem: A travessia do Mar Vermelho, de Marc Chagall (1887-1985)
Excelente texto! Parabéns!