Sob tutela e guarda do Povo!

Sob tutela e guarda do Povo!

 

A democracia aceita apenas a tutela do povo, qualquer outra significa a sua desestabilização ou mesmo o seu fim. Hoje, em toda parte, a democracia está tutelada por forças fora e além do povo, que podem ser internas ou externas à sociedade examinada. No caso do Brasil, a democracia nunca foi plenamente estável, sendo intermitente. Não conseguimos construir condições básicas para sua estabilização: igualdade, liberdade de expressão, controle popular sobre os recursos do país. Aqui sempre houve tutela dos muito ricos, dos militares, da polícia e, principalmente, tutela estrangeira sobre as decisões do Brasil e dos brasileiros. Em lugar da formação e da informação sempre tivemos repressão e propaganda. Por isto, a democracia permaneceu uma aspiração, sem alcançar um enraizamento profundo.

Quando saímos da ditadura militar implantada pelo golpe de Estado de 1964, o povo não assumiu o poder. Ao contrário, ocorreu uma transição tíbia, sem coragem, incapaz de fazer as reformas e as rupturas necessárias e equalizadoras para o verdadeiro estabelecimento de uma democracia com força vital própria, capaz de se sustentar autonomamente. Foi uma transição suave sem maiores confrontos, sem julgamento dos ditadores, de seus principais apoiadores, dos assassinos e dos torturadores do regime de força. Por isto, estabelecemos um simulacro de democracia. Uma farsa autorizada pelos ditadores. Os democratas de então não tomaram as armas das mãos dos fascistas, não assumiram por si mesmos a guarda da democracia.Por fraqueza, permitiram que os golpistas continuassem de posse dos recursos militares e mantivessem seus cargos e as benesses alcançadas durante as décadas de ditadura. As instituições continuaram autoritárias e violentas, maltratando a maioria da população.

Mas, aos poucos, elementos democráticos mais corajosos foram aparecendo aqui e ali. A constituição de 1988 foi um marco, forças populares foram organizando-se, alcançaram governos municipais e estaduais, aprofundaram seus discursos. Finalmente, quando o PT e Lula assumiram o poder central, pareceu que a democracia tinha realmente chegado ao Brasil. O PT era um partido claramente repudiado pelas forças estrangeiras que controlam a direita brasileira e, mesmo assim, estava assumindo o governo federal. No entanto, sob o governo do PT, não houve mudança muito significativa. A democracia continuava uma concessão e, portanto, uma farsa. A democracia não pode ser concessão, pois, só existe de fato se for imposta pelo povo contra os estrangeiros, os muito poderosos e os muito ricos. Concedida, está morta.

O PT chegava ao poder abrindo mão de uma proposta realmente transformadora para fazer um governo de coalizão, tentando reunir elementos discursivos esquerdistas, movimentos sociais progressistas e grupos empresariais brasileiros. A ideia era constituir uma classe dirigente nacionalista, capaz de exercer internacionalmente alguma soberania sobre o território brasileiro. Propunha uma distribuição da riqueza nova, sem tirar nada daqueles que detinham a maior parte dos recursos nacionais. Prometia-se aos muito ricos que eles enriqueceriam ainda mais com estes governos petistas e nacionalistas, que eram um tanto neoliberais, mas que também eram capazes de ampliar a distribuição da riqueza, melhorando um pouco as condições de vida dos muito pobres.

Os mecanismos distributivos não eram os clássicos da economia socialista e marxista, nem uma reforma agrária e urbana de cunho capitalista foi realizada – e o controle capitalista sobre a economia não foi sequer questionado. Ao contrário, foi por meio de novos mecanismos, até completamente aceitáveis para um contexto capitalista, que a distribuição foi feita. Para alguns, foi o crédito para a compra de bens de consumo, um mecanismo de mercado sem qualquer ataque aos princípios capitalistas. Para outros, foram instrumentos assistenciais como o bolsa família. Nada confrontava o modelo capitalista brasileiro, mas o conjunto das ações acabava por causar uma modesta distribuição de renda. A opção política também era eleitoral e perfeitamente compatível com uma democracia liberal bastante restrita. Nenhum radicalismo foi cometido pelo Estado. Nenhum latifúndio foi tomado abruptamente, nenhum banco ou empresa foi estatizado de modo autoritário pelo Estado.

Havia escaramuças constantes entre proprietários, rentistas, donos do capital de um lado e os movimentos sociais do outro. O Estado atuava mantendo e protegendo a propriedade, a renda e o capital, utilizando a polícia para isto. Nada havia de revolucionário nos governos do PT. Ao contrário, o PT tratou de utilizar sua influência sobre os movimentos sociais para conter a reivindicações mais fortes, para retardar o avanço das forças progressistas do país. Foi muito bem-sucedido nisto. Demasiadamente bem-sucedido. Fez isto em nome de sua aliança com o capital nacional. Mas, para ser justo, devo reconhecer que os governos do PT contiveram também os radicalismos da direita e retardou demasiadamente as reformas neoliberais exigidas pelo império, enfurecendo grupos poderosos.

No entanto, tal aliança era algo frágil. Não havia por parte dos empresários qualquer convicção ideológica sobre a necessidade de um país soberano. Estes pensavam ser arriscada a aventura de criar no Brasil um país plenamente capaz e autônomo. Muitos defendiam e defendem abertamente a tutela internacional. Culturalmente, preferiam e preferem desfilar ao lado dos dirigentes estrangeiros a serem vistos ao lado dos pobres. Escolhiam a subordinação às potências estrangeiras à liderança dos despossuídos do Brasil. São indolentes, preguiçosos para as tarefas que criar um país exige: afrontar a arrogância dos impérios; proteger o povo contra a agressão externa (militar, econômica, cultural etc.), estabelecer um projeto viável de país, liderar uma nação altiva e original, viver sob a tutela e a guarda do povo brasileiro. Por isto, nunca constituíram uma elite são antes uma matilha de vira-latas incultos e incapazes. São ferozes na defesa dos interesses externos que não compreendem, mas que tomam como seus. Vivem e viverão famintos e enfrentarão uma oposição crescente e violenta de seu próprio povo, que se encontra mergulhado em desamparo e desespero.São alheios a solidariedade que consideram uma falta moral grave, uma hipocrisia.

As instituições existentes representam mais os interesses estrangeiros que dominam o Brasil do que os interesses do povo brasileiro. Elas servem para comprar sofisticadas tecnologias estrangeiras quando poderiam resolver problemas simples com tecnologias simples, aliviando tremendamente as carências dos mais pobres. Um exemplo, na agricultura, desenvolvemos perigosos e sofisticados transgênicos, enquanto grande parcela de nossos agricultores permanece com baixíssima escolarização, sem qualquer orientação técnica, sem crédito, sem-terra.  O que mais falta é generosidade e visão de nossas potencialidades.

Outro exemplo, as universidades e todo o sistema científico nacional cobram dos docentes e dos pesquisadores a publicação em revistas estrangeiras que pouquíssimos brasileiros são capazes de ler e, demasiadas vezes, tentam punir quem se aproxima dos movimentos sociais dos pobres que lutam por direitos e por dignidade. Tentam assim legitimar as propostas tecnológicas estrangeiras que são a fonte de lucro de grandes grupos transnacionais enquanto sufocam a criatividade nacional e geram nossa dependência eterna. Reivindicam a condição de elite, mas são apenas os capitães do mato das potências externas.

Que lindo o Brasil será quando chegar o tempo em que caberá ao povo a tutela de seu próprio destino. Um tempo em que os dirigentes do país escolham submeter-se aos interesses do povo e se coloquem espontaneamente sob sua guarda. Viveremos então uma reconciliação que nos fará esquecer das violências de nosso presente tão triste e fascista. Este é um tempo que ninguém nos dará, mas que podemos conquistar se amor, coragem e sabedoria suficientes forem nossos companheiros. Todo trabalho para alcançar este tempo é gratificante e livre.


 

 

 

 

 

 

Prof. Dr. Antônio Ribeiro de Almeida Junior é professor na USP/Esalq – Piracicaba.

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