Abri a janela da sala de casa assim que o primeiro capítulo de “O Conto da Aia” (The Handmaid´s Tale, em inglês) chegou ao fim. Fiquei por um momento ali, vendo as crianças correndo pela rua, rindo sob o solzinho de fim de tarde do inverno falso e derradeiro de Piracicaba. Depois, fechei os olhos. Destampei as narinas. Passei a ouvir com devoção aos gritos santos e incômodos daqueles que ali brincavam. E como eu precisava deles naquela hora! Como eu precisava de um pouco do ar da tarde piracicabana antes de criar coragem para voltar à televisão e conferir aos demais capítulos da série que despertou a atenção do mundo desde o seu lançamento, em 2017.
Procurei ainda, pela rua, alguma figura feminina que me desse a certeza de que o enredo de “O Conta da Aia” é apenas ficção distópica – e que não está nem um pouco perto de se tornar realidade. Na rua, uma mulher jovem passou fazendo cooper – livre, leve e solta. Graças a Deus! – exclamei baixinho. Porém, depois de exclamar a Deus de maneira involuntária, arrependi-me. Mania de por Deus em tudo! Será que sou como os homens da série? Deus me livre! – (e lá entrou Deus de novo). Do outro lado da rua, uma mãe surgiu puxando pelo braço duas crianças que berravam e berravam. Nunca foi tão bom ouvir gritos de crianças, pensei.
Lembrei-me, de repente, de “A Confissão da Leoa” – do moçambicano Mia Couto –, romance no qual a narradora abre suas memórias dizendo que “Deus já foi mulher” e que “são as mulheres que, desde há milênios, vão tecendo a esse infinito véu” a que chamamos de céu. Do lado de fora do condomínio, porém, uma voz masculina me roubou de Mia Couto anunciando aos brados sessões de cura e libertação. Saí da janela e voltei para o sofá. Sobre ele, coincidentemente ou não, os jornais traziam imagens de “santinhos” – profetas de novos tempos prometendo vida melhor. O incômodo com a narrativa de “O Conto da Aia” voltou.
E pensar que Margaret Atwood escreveu seu romance, que serve de inspiração à série, em 1985. Nessa época, a autora canadense – inspirada na Idade Média inglesa dos “Canterbury Tales”, de Geoffrey Chaucer – percebera que o medo do inferno e a esperança de se garantir um lugarzinho no céu também modernamente seriam capazes de criar grandes redes humanas que poderiam vir a interferir violentamente nos costumes e nos rumos das sociedades – e, por que não dizer, nos rumos da própria humanidade em si. Por isso, calcada no medo e na imposição moralizante e religiosa de hábitos sociais trilhados sob o olhar vigilante de uma imensa massa ávida por controlar a vida alheia e julgá-la à luz de preceitos supostamente divinos, a narrativa de Atwood se faz claustrofóbica.
Fecho os jornais e a janela da sala. A ausência de sons e promessas agora me tranquiliza. Confiro na estante da biblioteca o meu exemplar de “O Conto da Aia”. Ele existe e é literatura. Sossego. Atwood, ao lado de Orwell, mora na estante. E que continue assim. Respiro. A minha volta para os próximos capítulos já pode acontecer.
(Texto publicado no Jornal de Piracicaba, quarta, dia 05 de setembro).
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.