Sina maldita, a da burguesia, condenada

Sina maldita, a da burguesia, condenada

Sina maldita, a da burguesia, condenada
a ser nada, desde os tempos de São Francisco,
quando mercadores vendiam tapetes vindos da Persia,
e ficavam ricos, e reivindicavam para si
o desmonte dos sistemas de poder,
que ainda levaria séculos a se concretizar,
enquanto, entre as eminências pardas e as luzes da ribalta,

homens ricos de todos os naipes patrocinavam
progressos e retrocessos, ao sabor de sua muita ou pouca inteligência,
que não importava, afinal, desde que o dinheiro comprasse
a nova realidade que se descortinava, e assim passou-se o tempo,

e cabeças rolaram ao som das forcas e das guilhotinas,
até que o primeiro automóvel a gasolina remiu a classe,
e tornou universal o burguês, coitado, agora condenado
a carregar nas costas uma civilização que não criou,
mas herdou, a duras penas,

e seu destino agora é ser esse nada, apenas um número
que se conta nas urnas que confirmam o que somos todos, nunca mais revolucionários de coisa alguma,
mas tão somente os funcionários dessa máquina
que nos aplastra a cada dia,
transformando em salsicha a nossa carne
desprovida de tempero,

para nosso próprio desespero, em não termos sequer a autonomia
de recusarmos esse fardo, de sermos algo,
desesperadamente algo, que não esse passeio no shopping
a apreciar embevecidos as lojas, a nos sugar o íntimo,
a nos dizer quem somos, de onde viemos, para onde vamos,

nós, uma vida boa sem lutas nem heroísmo,
a deixarmos memória alguma, a nos apagarmos
dos momentos históricos, cada vez mais raros,
reduzidos a mofados carimbos de cartórios
que levaremos conosco, para provar que sim,

que no fundo fomos nada, nunca fomos senão nada, nunca poderíamos ter sido
outros que nada, e que, apesar disso, tivemos em nós
todos os sonhos do mundo.

 


Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.

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