Há um conto de Tchekhov, chamado O relato do jardineiro chefe, em que o tema em foco é o ato de julgar. Creio tratar-se de uma explicitação da postura do autor diante dos problemas humanos, pois assim como o jardineiro em questão, o maior dos contistas foi alguém cuja obra (e vida, talvez – não sei) repele absolutamente o procedimento de criar personagens sob o crivo de seus próprios valores e preferências, procurando simplesmente apresentá-los na sua condição humana, eivada de contradições e vulnerável a equívocos. O jardineiro-chefe conta a história de um assassino em princípio imperdoável – ele havia tirado a vida de um sábio que curava as pessoas de uma cidade e era, portanto, por todos adorado e reverenciado -, mas que foi absolvido. Enquanto todos se revoltaram diante da flagrante injustiça, Mikhail Kárlovich (o jardineiro) disse:
– Quanto a mim, meus senhores, eu sempre saúdo com entusiasmo as sentenças absolutórias. Eu não temo pela moral e pela justiça, quando dizem ´inocente´, mas, pelo contrário, sinto satisfação. Mesmo quando a minha consciência me diz que, absolvendo um criminoso, os jurados cometeram um erro, mesmo então eu rejubilo-me. Julguem por si mesmos, senhores. Se os juízes e os jurados acreditam mais no ´ser humano´ do que nas testemunhas, nas provas materiais e nos discursos, será que essa ´fé no ser humano´ não está de per si acima de quaisquer considerações cotidianas?
Penso nesse belo conto ao tomar conhecimento do caso recente envolvendo o agora ex-ministro Silvio Almeida, acusado de assédio sexual. Caso chocante exatamente porque, antes de tudo, põe em dúvida a possibilidade de “fé no ser humano”. Afinal, trata-se de uma pessoa de quem, pela trajetória visível e pelo cargo por ele ocupado, não se poderia esperar o comportamento que está sendo trazido a público, em que pese juridicamente (tecnicamente falando) ainda carecer de bases sólidas.
Que justiça seja feita, bem-feita, preferencialmente. Mas, como desejaria o jardineiro-chefe, quiçá reste alguma possibilidade de, depois disso, confiar no ser humano como portador sincero e minimamente coerente de utopias – como a de igualdade racial e de relações respeitosas e mutuamente construtivas entre homens e mulheres. Que depois do fato consumado e julgado, pena aplicada, não passem todos a crer que a utopia será sempre uma máscara para as verdadeiras intenções de seus defensores e divulgadores, de fato uns hipócritas. Que, após este lúgubre episódio, não se instale a crença de que o mesmo que acontece com partidos de esquerda que abandonam seus ideários a troco de projetos de poder (maquiavelicamente, quando muito, justificando-se), ocorre, também, com os indivíduos, sempre traidores, na prática, do que em teoria e em tese advogam, até com ardor.
Em meio a este conflito profundo entre utopia e hipocrisia, “Julguem por si, meus senhores.” (Mikhail Kárlovich) Só espero que não o façam sentindo na boca o gosto de mel, mas sim de fel.
Valdemir Pires é economista e escritor.