Cem bilhões de seres humanos já passaram sobre a terra,
segundo os cálculos respeitáveis de graduados cientistas,
e é um bocado de gente, um monte de carne e ossos,
de nervos, de sonhos, de esperanças, de fracassos e conquistas,
e todos, salvo engano e os que estão vivos, morreram
e aqui deixaram o vasilhame, e das duas uma,
ou viraram pó, estrume, pasto pra vermes, chorume,
recheio de salsicha ou de salame, ou bem
passaram pra melhor, para o mundo do além, onde tudo é lindo e leve,
onde se descansa eternamente da canseira dessa vida breve,
enfim, ficamos entre a bio-lógica e a meta-física, e pensando bem,
dependendo do ponto de vista, as duas são absurdas,
uma por restringir a vida
a um mero estremecer no espaço e no tempo, e outra
por estender esse estremecimento a uma existência infinita,
e, para piorar, dois deuses disputam aí a primazia,
sendo um a goela implacável e vazia do abismo da matéria,
e o outro a amplidão sem fronteiras e abarrotada de gente
de uma sociedade transparente e etérea.
Ou seremos nós que estamos pensando além do possível?, quero dizer,
o ser humano é limitado, pra baixo, pra cima e pro lado,
e tem coisas para as quais ele está capacitado, enquanto outras
é melhor deixar pra lá, porque nem suando sangue chegará a um resultado,
porque nem tudo o que pode ser escrito pode ser pronunciado,
e nem todo o enunciado pode ser compreendido, de modo
que podemos observar uma formiga, mas não dá pra conversar com ela,
e uma coisa é a nossa política, e outra a política dela.
Quero dizer que o mais poderoso telescópio ficará para sempre circunscrito
a vasculhar o interior de uma esfera, porque essa é a forma que alcança seu olho finito,
e que o enorme pano preto além do último ponto visto
permanecerá além da nossa compreensão, não importa
o quanto alarguemos o horizonte
além de tudo o que um dia foi predito.
E ademais sucumbimos, como a fruta que cai do galho,
ante uns olhos brilhantes, um tom de voz que nos aplastra, a lembrança do vulto amado,
e nos vemos no chão, derrotados, atribuindo formas às nuvens
e nomes próprios aos insetos alados,
e toda a evolução da espécie cai por terra, e somos reduzidos a balbuciar palavras sem sentido,
enquanto tentamos recuperar um mínimo de ar, de aplomb, de dignidade.
Então, dos muitos deuses que nos foram colocados,
aquele da cruz, o elefante, o chacal, o abutre, a águia,
ou esses modernos do asfalto, melhor é escolher
o que estiver mais próximo e possível de ser experimentado,
e se essa experiência transcender o nosso estado, melhor, porque a visão alcança
até onde vai o objeto desejado, e aqui não se trata de matéria,
de espírito, de finitude ou eternidade, e o que conta, no fundo,
é a intensidade da experiência para cuja abertura estamos preparados.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.