Menos rua do que casa. Menos carro do que asas. Mais eu – muito mais eu! – do que o que não há, em verdade, de meu nesta cidade. Corro dentro do carro. Morro dentro do carro. Sou eu, ao volante, quem vê o asfalto úmido que brilha? Ou eu sou, mesmo, o pavimento negro que a chuva enreda em trilha?
Nos lares, parte das gentes dorme seu sono de há anos, seu sono de eras – e ausentam-se da garoa que cai no quase vazio das avenidas, das vilas, travessas, ruas e vielas. Eu? Eu sobro. E rodo – sem ver. Redobro o ser. Viajo viagem em cada esquina. Agora – e para sempre – sou só eu e Pira, à noite, errando sob a chuva fina.
Meus faróis de luzes são sonhos que não tenho – semáforos que colorem o mundo e piscam e trocam as cores em poucos segundos. Governador que sou, viro a Moraes Barros. Corto avenidas e vales feitos de Armando de Salles. Sigo a reta, vou em rota. Subo mudo a Moraes: refundo os meus ais a despertar meus olhos ante um Barão soturno, sujo e lindo – que fica mais soturno, mais sujo e mais lindo porque chove.
Não paro – mas reparo bem em mim feito estádio, estágio de oração futebolística em ilusões perdidas: não há cobranças, faltas ou pendências (mas como abundam em ti as carências, Barão do meu coração de criança feito arquibancada). Respiro o nada. Cheiro a chuva. Volto à esperança sem Cabo do Bojador ou clemência. Quando me vejo, sou à esquerda buscando a Independência.
Independência dependência que bem sinto – de muros fúnebres pintados no vento, ao relento da história que registram. Como na vida, revisto sempre ao longo do quarteirão – fincados nessa avenida em catálogo – os diálogos entre o azar e a sorte, entre a vida e a morte retratados nas obras que adornam-império o muro-duro do cemitério, campo santo dos que se foram e se vão – e que paradoxalmente ali ficam, na contramão da vida e (alguns, a depender da posição) da avenida. Independência dependência, eu sou um só – ai de mim! – tenha dó.
Sou um só e que insiste em ser seu – mesmo entre carros e motos e bicicletas e patinetes e pedestres e gentes e cães e buzinas e motores que igualmente – como a mim – te cruzam e te andam sem verem o teu fim. Que para ser seu, só seu, é preciso primeiro ser forte. Independência ou morte! – grito na noite que me traz por sorte o exílio íntimo feito norte. Então, cansado de tanto trafegar-me em ti, me sinto alegre, na alegria efêmera de um boboca, junto a raras recíprocas etílicas bocas a saborear gostoso um chope gelado no Toca.
Chove. Desafio a morfologia do verbo e também chovo. Chovo aquela triste chuva (cristalina) de resignação – como escreveu Bandeira. É quase manhã no relógio da cronologia da sua (e da minha) vida inteira, avenida carente de ter e ser, de fato, Independência. Porque passados os brilhos que são filhos dos seus bares, morres noturna num deserto quase esquecido entre prédios e lojas fechadas – porém diurnamente sagradas como altares. O ocaso dos seus últimos quarteirões são em mim portos de solidões que me alertam – como sina – que tudo, feito uma avenida, um dia termina.
Piro. Pira. Rumo para a saída, no limite dos nossos limites. Num apartamento de um edifício que antecipa a estrada, uma luz se acende e contraria a madrugada. Da janela, alguém me espia a passar dentro do carro – há esperança? Choro baixinho feito criança porque sinto – na distância nostálgica que se abre – a saudade dos que deixam, mesmo que em partida rápida e momentânea, as artérias infartadas do teu corpo doente (do meu corpo doente) sentimental que monumental de cidade.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.