Duas ordens de medidas são propostas pelo programa de governo de PT/Lula como ações governamentais iniciais e desencadeadoras de um amplo e vigoroso processo de mobilização popular, com vistas à refundação democrática no Brasil.
Primeiramente, a adoção de medidas para anulação do entulho autoritário promovido pelo governo golpista de Temer, destacando-se:
- Emenda Constitucional nº 95, apelidada de Emenda do Fim do Mundo, que congela, absurdamente, os gastos orçamentários por 20 anos, afetando negativamente os investimentos nas áreas sociais, sobretudo Saúde e Educação.
- Reforma Trabalhista, que fragiliza direitos e enfraquece a luta dos trabalhadores;
- Mudanças no marco regulatório do Pré-sal, cujo principal efeito foi o de facilitar a entrada de empresas estrangeiras na sua exploração, em detrimento da Petrobrás e, por consequência, da soberania nacional.
A disposição de revogar esse entulho, já nos primeiros meses do governo democrático-popular, é fundamental, sem o que é inimaginável governar em benefício da esmagadora maioria do povo brasileiro. Contudo, a batalha por essa finalidade será muito dura, particularmente se for necessário quórum qualificado para votação no Congresso, como é o caso da Emenda Constitucional nº 95. Emendas constitucionais exigem pelo menos 308 votos na Câmara dos Deputados e 49 no Senado para serem aprovadas. Como garantir esse patamar de votação?
Na atual formação, na qual o Congresso é controlado pelo chamado “Centrão” – grupo numeroso de parlamentares articulados em torno de interesses ultraconservadores (bancada BBB: bíblia, bala e boi) e de práticas fisiológicas, a serviço do neoliberalismo – é difícil imaginar como será possível revogar o entulho autoritário. Afinal, foi exatamente com essa formação majoritariamente conservadora e fisiológica que ele foi aprovado. Não há nenhuma sinalização de que haverá uma renovação pró-progressista no Congresso que será composto nas próximas eleições. Nesse sentido, sem uma ampla e massiva pressão popular será impossível anular o entulho autoritário.
Outra ordem de medidas diz respeito à Reforma Política que vá muito além do aspecto partidário-eleitoral, contemplando também a reforma do Estado – foco no Poder Judiciário -, de modo a submetê-lo ao controle social, e a reforma da Mídia, de modo a romper com os padrões monopólicos e antidemocráticos que hoje a regem. Uma reforma que permita a ultrapassagem dos limites estritos da democracia representativa, amplie os espaços da esfera pública e facilite a participação social, rumo à democracia de alta intensidade. Enfim, uma radicalização democrática, sem a qual não lograremos deter a escalada da barbárie e erigir um desenvolvimento nacional soberano, inclusivo e sustentável.
Um Congresso Nacional de maioria conservadora e a serviço dos interesses do grande capital, tal como se imagina resultará do próximo pleito, sequer cogitará colocar em pauta uma agenda dessa envergadura e dessa radicalidade. É necessário buscar contrastá-lo pavimentando um caminho que permita dar um foco específico a essa agenda, elevando o debate para um nível adequado e fazendo aflorar com nitidez os termos do que se está buscando. A proposta de Lula/PT para viabilizar esse caminho é o da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte (ANC) livre, democrática, soberana e unicameral, exclusivamente destinada à finalidade em questão.
É fato que será extremamente difícil que seja aprovada a convocação da ANC. Por outro lado, alguém poderá objetar, com razão, que,caso se logre que a convocação seja aprovada, sua composição também terá inevitavelmente uma maioria conservadora, dado o nível da correlação de forças prevalecente na sociedade hoje, fazendo com que as reformas democratizantes dificilmente avancem tanto quanto se deseja. Por fim, há que se considerar o risco de a maioria conservadora se assanhar e manobrar para que o escopo da ANC se estenda para uma pauta mais abrangente, no sentido de suprimir direitos sociais conquistados e inscritos na Constituição de 1988.
Essas dificuldades e riscos são reais, contudo, como diz o ditado, não se faz o omelete sem quebrar os ovos. Sem dúvida, convém reiterar enfaticamente que se quisermos avançar rumo a outro projeto de país que não seja o que está sendo promovido pelo golpe – na verdade, o golpe promove o desmonte do país – temos que correr riscos e apostar sem titubeios na força da mobilização cidadã.
A convicção de Lula, expressa no seu plano de governo, é, portanto, a de que não será possível governar para a maioria da população, nos termos da refundação democrática, se não tiver o amplo e decidido apoio dessa maioria, nas ruas. Não significa descartar as disputas e articulações no Congresso Nacional, mas sabendo de antemão que neste espaço as possibilidades de avanços são muito reduzidas se não houver pressão, dada a correlação de forças desfavorável. Como articular então a mobilização popular para defender e viabilizar as medidas aqui preconizadas e aquelas que se perfilam em outras agendas do plano de governo?
A mobilização popular pela democracia e pelos direitos, mesmo na hipótese de um governo democrático-popular, não se dará espontaneamente. Já vimos esse filme: os setores populares, via-de-regra, ou se acomodam e aguardam apáticos que o governo opere milagres ou carecem de dutos e instrumentos organizativos. Há que se construí-la e fomentá-la, portanto. Impõe-se que a frente progressista de partidos e movimentos sociais que terá viabilizado a eventual vitória eleitoral do projeto democrático-popular passe, de forma autônoma,imediatamente, a articular amplos setores sociais para garantir que a agenda de reformas democráticas aqui exposta se torne realidade. Por outro lado, o governo terá que sair a campo em defesa do seu programa e se valer de todas as prerrogativas governamentais e da liderança presidencial, utilizando intensivamente os espaços institucionais de rádio e tv, as redes sociais e o corpo-a-corpo.
O golpe de 2016 trouxe ou reavivou uma péssima notícia: esgotaram-se as ilusões. Os interesses do grande capital, expressos na vertente neoliberal e na geopolítica hegemonizada pelo Império, não admitem que se erija no Brasil um Estado de Bem Estar Social, inscrito na Constituição Cidadã. Para esses interesses, o Brasil, como, de resto, os países periféricos, deve seguir desigual, subalterno e susceptível à pilhagem de suas riquezas. Consequentemente, operam para evitar que a soberania popular triunfe na Terra de Santa Cruz, valendo-se, na versão golpista em curso, típica da guerra híbrida, do Estado oligárquico e da mídia monopólica.
Os próximos anos serão de muito debate e de muito esforço para o campo democrático-popular qualquer que seja o cenário vencedor nas próximas eleições. Ter ciência disso e nos prepararmos convenientemente constituem os fundamentos para alimentar nossa esperança no enfrentamento contra a barbárie.
P.S. Dando os últimos retoques neste artigo, tivemos a notícia de que o STF aprovou a terceirização irrestrita, impondo mais um duro golpe sobre os trabalhadores. Depois veio o incêndio no Museu Nacional e, para piorar, tivemos o atentado contra Bolsonaro. A barbárie bate à porta.
José Machado, do PT, foi deputado estadual por um mandato, deputado federal por dois mandatos e prefeito de Piracicaba em duas gestões
Excelente texto!