Lá sempre foi espaço de alegria. De burburinho de mil vozes falando ao mesmo tempo, sonhando sonhos de futuro, se conhecendo, discutindo muito, ocupando espaços.
Lá era espaço de aprendizado. Não apenas com os livros, com os laboratórios, com os projetos. Espaço onde se aprendia a viver, a entender melhor o mundo, a identificar universos muitos maiores do que os conhecidos até a recente adolescência.
Lá era espaço de debate. Onde se aprendia a fazer política. Onde existiam os grupos que queriam isso e os que lutavam pelo oposto. Mas onde coexistiam apesar dos enfrentamentos.
Lá era espaço de entender o que eram colegiados. Como era possível se pensar coletivamente, definir cursos, se adequar a compromissos sólidos do que até então era pouco assumido como cidadania na prática cotidiana.
Lá era espaço de música, de teatro, de cinema. Para onde vinham e se apresentavam figuras de reconhecimento nacional, aplaudidos de pé, ouvindo os pedidos de bis, oferecendo opções de arte que nem estariam disponíveis na cidade. Espaço da descoberta do humor que ia além de fazer rir.
Lá era espaço – da biblioteca ao cineclube – também para quem não era aluno, estudante ou funcionário. Bastava querer ir, assistir, retirar o que gostasse de ler. Lá era espaço para todos, de forma inclusiva.
Lá era espaço de gente que amava estar ali, construindo um projeto de educação diferente. Que fez muita gente amadurecer de outro jeito, comprometida, acreditando em mudanças.
Lá era espaço de negociação. Quando as diferenças pareciam intransponíveis, havia respeito, reuniões sem fim até que se chegasse a acordos que eram cumpridos tal como estabelecidos.
Lá era espaço de ver pais e avós, humildes e acanhados em pleno teatro, com lágrimas nos sonhos por perceberem filhos e netos conquistando um diploma que a eles fora negado no passado.
Lá era espaço de tamanha confiança afetiva que até mesmo cinzas de uma ex-aluna cremada foram espalhadas nos jardins da capela.
La era espaço livre para sindicatos, associações, decretações de greve, movimentos de solidariedade, favelados, grandes oradores e outros nem tanto, organizações populares e eruditos.
Lá era espaço de simplesmente ver surgirem novos amores que por vezes duravam só o tempo do curso e, em outros, acabavam sendo para a vida toda.
Lá era espaço de poder dizer, de ousar, de festejar o melhor, de insistir naquilo que parecia impossível.
Até o dia que começou a destruição. Lenta, vagarosa, desrespeitosa, projeto definido de dizer que o espaço estava mal aproveitado, que o ensino era inadequado, que bom mesmo era responder às demandas de um mercado competitivo e pouco generoso. Outros que queriam e iriam tomar e impor seu poder sobre o local.
Tudo foi sendo morto a pouco e pouco. Dos sistemas de informática, aos acervos da biblioteca. Das atualizações dos equipamentos ao descuido dos jardins. Do afastamento dos professores mais qualificados sem ao menos um muito obrigado. Dos alunos que passavam a ter bem menos vontade de estar nas passarelas, em voltar para simplesmente estar ali.
A decadência foi sendo sentida. O movimento diminuiu. Os sonhos foram transferidos para outras universidades. Os projetos rasgados ou colocados em arquivos.
Até que o local foi “desativado”. Com a explicação capciosa de readequação da instituição. Tudo fechado, tudo abandonado, tudo deixado de lado como se ali não houvesse memória.
Aos poucos que permaneceram para garantir um emprego em que nem mesmo o salário era pago em dia, foi cortada a água, oferecidas condições mínimas e pouco dignas para cuidar daquela imensidão toda, que agora só tinha portas fechadas, corredores cheios de pó, banheiros onde começava a se acumular mau cheiro, janelões onde já não passava a luz.
Primeiro foi um incêndio. Destruiu apenas a vegetação. Mas ninguém disse nada, apesar do risco que ele foi para quem morava nas imediações.
Nesta semana a morte apareceu. Morte absurda de um rapaz de 25 anos, idade próxima a muitos que ali estudaram durante décadas. Eletrocutado. Sozinho e acusado de furto. Caso de polícia.
Desta vez o Taquaral morreu junto. Simbolicamente. Mas de vez. Num último suspiro ainda capaz de garantir a indignação dos que não se curvam à conveniência de defender gestores inoperantes e representantes religiosos que se transformaram em efetivos mercadores, ao invés de permanecerem na luta coerente e constante pela educação.
Morto. Que o acompanhe o Réquiem de Mozart, nestes últimos momentos, de saudade dos sons do órgão e das vozes dos corais – com seu recitativo cheio de tristeza, gratidão ao Senhor e certeza de que “tudo que que está oculto aparecerá e nada ficará impune”. (https://www.youtube.com/watch?v=Dp2SJN4UiE4)
Beatriz Vicentini é jornalista.
(Foto de capa: Facebook Maria Elvira Evangelista).
Querida Bia.
O último parágrafo comprova que algo jamais morrerá dentro daqueles que viveram “lá esse espaço”…
Beijão.
Querida Bia.
O último parágrafo comprova que algo jamais morrerá dentro daqueles que viveram “lá esse espaço”…
Bia, emocionei-me com teu “requiem”. Tão real e tão desesperançado. Se lido por todos os que têm poder de transformar esse campus em campus de uma universidade federal, espero que a esperança tenha chances de voltar, ainda que hoje pareça uma ilusão utópica.