Em 1933, o escritor alemão Thomas Mann recebeu em sua casa, pelo correio, um embrulho sem remetente contendo um livro e um pequeno bilhete. O livro, na verdade, era um exemplar de “Os Buddenbrook” (publicado em 1901) – de autoria do próprio Thomas Mann. No entanto, o exemplar de seu próprio livro a ele mesmo remetido estava queimado pela metade. O bilhete que o acompanhava – escrito por um jovem anônimo que dizia ter pouco mais de 18 anos – explicava ao escritor a razão pela qual um exemplar queimado chegava às mãos dele. Informava o bilhete: ”devolvo a você, queimado pela metade, a porcaria de seu livro. O meu desejo, no entanto, é fazê-lo queimar o resto.”
Tempos depois – ainda antes da ascensão completa do nazismo – terminada uma palestra sobre Wagner, Mann teve de sair escondido pela porta dos fundos do teatro em que se apresentara, pois alguns membros da sociedade alemã, aliados aos nazistas presentes, queriam pegá-lo. Estabelecia-se assim, na vida de Mann e dos artistas alemães, os antecedentes do estado de exceção que ceifou a vida de mais de 5 milhões de judeus e também de milhares de não-judeus – dentre homossexuais, artistas, testemunhas de Jeová, deficientes físicos, ciganos e tantos outros considerados “degenerados.” Contra eles, nazistas e defensores da moral alemã queimaram livros, fecharam teatros, proibiram peças, prenderem e mataram atores, músicos, compositores, roubaram e queimaram um sem-fim de obras de arte de valor inestimável e resolveram, por conta própria, o que seria ou não seria considerado arte no Reich.
Em pleno século XXI, passados mais de 70 anos da II Guerra, faz espécie saber que grupos reacionários intentam reavivar o cenário de censura e trevas do fascismo, agora, em nossa nação. Dominados por um total descaso acerca da história brasileira e mundial, e ignorantes que são de qualquer noção mínima sobre arte, esses grupos enraivecidos bradam contra aquilo que não entendem e levantam a bandeira de suas religiões para angariarem – para junto de si – uma massa cega e devota sempre pronta a praticar as piores atrocidades em nome de Deus. Dominados por um radicalismo histórico, pregam o retrocesso, vociferam contra a diversidade e praticam uma intolerância travestida de fé e moral. Em resumo, misturam o que não sabem com o que não entendem e jogam fora a água do banho com a bacia e a criança – para usarmos aqui um ditado bem alemão.
A saber, a exposição “QueerMuseu” – ocorrida em Porto Alegre e que tanto chocou um movimento pseudo-político adolescente e grupos reacionários de plantão – era composta por obras que já circulavam em renomadas galerias e museus há pelo menos algumas décadas! Reunidas em uma mesma exposição, essas obras – de artistas como Volpi, Cândido Portinari, Leonilson, Lígia Clark e Flávio de Carvalho – nada tinham de incitação à pedofilia ou à zoofilia – como divulgado pelos que pleitearam, junto ao patrocinador da exposição, o fechamento do evento. Juntas, as obras desses artistas – alguns deles gênios da arte brasileira, como o próprio Portinari – ilustravam a diversidade sexual e manifestavam visões sobre o universo polissêmico e plural da sexualidade. Além disso, estavam reunidas em local ao qual só teria acesso quem, realmente, quisesse apreciar a exposição.
As manifestações contra a “QueerMuseu” tristemente relembraram aquelas que, outrora, em diferentes períodos da humanidade e em situações diversas – seja em nome de Deus, de uma moral religiosa tacanha ou imbuídos do desejo de higienizar o mundo a partir de uma determinada ótica – queimaram livros, ameaçaram autores, fecharam teatros, censuraram e reprimiram com violência qualquer manifestação artística que fugisse a um entendimento limitado e totalitarista. Mais do que isso, torna-se inacreditavelmente que, em pleno século XXI, o nome de Deus ainda continua sendo moeda de troca na prática da intolerância, do desrespeito à diversidade e no combate à livre expressão.
Em outra via, acredito que, quem – como eu –, reafirma seu total e irrestrito apoio aos curadores da exposição “QueerMuseu” e a todos os demais artistas do Brasil e do mundo – que com sua arte questionam as forças que oprimem a humanidade – felizmente irmana-se aos que rechaçam qualquer ação que coloque a arte e a sociedade sob a tutela de patrulhas morais, político-ideológicas de qualquer natureza e religiosas de qualquer espécie. Mais do que isso, nos irmanamos assim a todos aqueles (sejam ou não artistas) que – neste momento de reacionarismo que mais uma vez enfrentamos – defendem com sua arte (e com sua vida) o direito a uma existência menos limitada intelectualmente, mais humana, mais tolerante e mais diversa.
(Artigo publicado na Tribuna Piracicabana em 26 de setembro de 2017)
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho e coordenador do curso de pós-graduação em Literatura e Outras Linguagens Artísticas da Unimep.
Ótimo comentarios