A barata voou, e estamos todos em pânico, batendo-nos as cabeças, sem ter para onde correr, oh!, meu Deus, oh!, o que será de nós?, se o inimigo é errático, e não mantém a linha, e varia a cada dia, e a cada dia nos ataca de um modo diferente, que faremos nós, na linha de frente, que não podemos vê-lo, a ele, que não respeita regra alguma, que nos comerá vivos se puder, que, se puder, matará mesmo os seus no afã canibal da vitória que, nem sabe por que, almeja acima de tudo, acima da própria vida do planeta, acima do sagrado e do profano, acima de qualquer coisa, não importa quanto sangue derramado, quantas calúnias, quantas mentiras, quantos cadáveres, dentro e fora dos armários, quantas crianças tiverem que morrer de inanição, queimadas, despedaçadas, vivemos nessa Gaza em que as bombas de fósforo dos discursos cáusticos e infames de políticos, de líderes religiosos, de influenciadores, de todos os lados, corre apenas para aumentar a pressão, não importam os meios, não importa a ética, nenhuma fronteira será respeitada, o limite é viver em Marte, claro, mas apenas aquela elite a que está destinada uma vida de privilégios extraterrestres, locupletando-se como hoje em hotéis, carros e prostitutas de luxo, enquanto os que sustentaram a loucura generalizada serão abandonados nessa terra e se afogarão em fezes, e nós, e nós, que lutamos, que buscamos trazer para a linha esse trem desgovernado que arrasa as campinas e os povoados, que tentamos inutilmente falar de direitos, da dignidade da pessoa humana, da dor do outro, de que todos tenhamos vida, e onde?, onde o eco de nossas palavras, quando até mesmo aqueles a quem nos dirigimos nos dão as costas em busca de qualquer quimera, e uns poucos – pouquíssimos – ainda resistem esparsos, esperando o tiro que os resolva a sair de suas tocas, onde?, onde se esconder, quando os que deveriam nos defender nos cobrem de balas e palavras de escusas, e continuam atirando nas viúvas mortas e nos herdeiros da miséria, como se fosse possível ao planeta sobreviver apenas de fastfood e conveniências, como se o brilho da tecnologia nos salvasse sem necessidade de nenhuma ciência, que fazer, que fazer, nos perguntamos, onde estão os coletivos operários, as comunas camponesas, senão nos sonhos dourados dos livros em que aprendemos, escritos há cem, duzentos, um milhão de anos atrás, por homens que já não existem para homens que já morreram, que fazer, para onde foram as lanternas que seguravam os protomártires dessas nossos tempos, enquanto tateamos na mais escura noite, tentando reunir os cacos, os pedaços esparsos de doutrinas que já não falam com ninguém, senão conosco mesmos, sentados ao redor dessa mesa, essa doce mesa de bar, tomando cerveja, preocupados com os destinos do mundo, falando asneiras, e, de repente, a barata voa, e só sabemos correr, salve-se quem puder, já não há ordem unida, nem teoria, nem comanda, nem a marcha dos cem mil, mas é cada qual à sua maneira.
Tito Kehl é arquiteto e urbanista. Presbítero pela Ordem Ortodoxa Hospitalar Saojoanina, dedica-se à literatura – tendo publicado diversos livros dentre os quais destacam-se “O Amor – entre outras coisas” e “Poemas ao Deus Desconhecidos”.