Algumas experiências são tão marcantes e definitivas que guardam a força de se constituírem como referências éticas para toda uma vida. Ao longo de minha trajetória existencial tenho tido a rara oportunidade, e diria até o privilégio, de vivenciar muitas experiências fortes, significativas e germinadoras de concepções profundamente solidárias e libertárias de como deve ser a dinâmica da vida em sociedade. Experiências que apontam, sobretudo, para uma prática política alicerçada em uma perspectiva ética, pautada nos princípios de justiça, solidariedade, liberdade e igualdade. O I Encontro Nacional do Pronera, realizado em Brasília, entre os dias 30 de junho e 4 de julho de 2025, sem dúvida se constitui como uma dessas experiências germinais.
O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) foi instituído em 1998, no entanto, somente se consolidou como política pública do governo federal no contexto do segundo mandato do Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, a partir da promulgação da lei 11.947/2009 e do decreto 7.352/2010. Por meio de parcerias entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), universidades, institutos federais, sindicatos e movimentos sociais, o Pronera tem buscado implementar projetos que promovam e garantam o direito constitucional de acesso à educação na realidade específica da população que vive em áreas rurais.
Marcado por uma intensa convivência, em um ambiente formativo, de maneira a reproduzir a dinâmica da pedagogia do próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Terra, o I Encontro Nacional do Pronera se constituiu, sobretudo, como um singular espaço de debate político, evidenciando a urgência da ampliação do orçamento público para se avançar em uma reparação histórica de acesso à educação no campo. As atividades sempre se iniciavam com os impactantes e profundamente humanizadores momentos de mística, apontando e reforçando às concepções ético-políticas do MST. As análises profundas sobre a conjuntura e realidade do campo subsidiaram, com dados e teoria, para repensar os rumos para a política nacional de reforma agrária. Interessante destacar ainda os momentos de cultura e arte, que deram grande beleza e sensibilidade formativa a todo o encontro.
A compreensão de que a educação é um direito humano, que deve ser assegurado pelo Estado de maneira universal, inclusive para aquela parcela da população que vive no campo, configura-se como o ponto central de toda atuação e gestão política do Pronera. Promover o acesso à educação no campo representa avançar para uma concepção mais plena do próprio sentido da democracia. Torna-se urgente promover justiça no campo, por meio da reforma agrária, e, concomitantemente, criar estratégias para que a cultura, em sentido amplo, seja democratizada, a partir do acesso à educação, em um movimento que socializa também a produção do conhecimento.
Em séculos de uma história de dominação colonial a população rural, bem como os deserdados e condenados da terra, têm sido alijados também do acesso à educação. O conhecimento sempre foi um elemento utilizado como distinção de classe, um bem privatizado, acessível apenas a um pequeno grupo, considerado como a elite de uma determinada época. A apropriação da educação e da cultura, por parte de uma elite econômica, foi uma das estratégias básicas para se perpetuar um sistema fundado na opressão e na exploração. Por isso os espaços de troca e produção de conhecimento, como as universidades e centros de pesquisa, sempre estiveram fechados para os mais pobres e, principalmente, para os trabalhadores oriundos do campo. A tarefa política do Pronera alcança, então, um sentido profundamente transformador, na medida em que atua para romper com a lógica histórica que privatiza o conhecimento. As políticas públicas de educação e cultura, implementadas pelo Pronera, ao alcançarem a população rural, as comunidades tradicionais e quilombolas, acabam por movimentar e transformar desde a base da sociedade, abalando, assim, estruturas historicamente excludentes e elitistas.
A educação transforma as pessoas, que, agindo coletivamente, transformam a sociedade. Esta é uma das lições básicas ensinadas pelo grande mestre Paulo Freire. A educação em movimento, alcançando o campo e a cidade, vislumbra construir outras bases sociais, transformando a vida e as relações humanas, sempre a partir de uma ética solidária, coletiva e libertadora. Na relação dialética entre os movimentos sociais – marcadamente com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) –, as universidades, os Institutos Federais, os sindicatos e o Pronera, a educação no campo ganha novos contornos e perspectivas. Há uma consciência crescente, de classe, que passa a definir as demandas por educação, na afirmação de que o trabalhador rural, mesmo sem deixar o campo, deve ter o direito de acessar todas as áreas do conhecimento. O Instituto Federal de São Paulo (IFSP), na articulação com os movimentos sociais, por meio da formulação de projetos submetidos ao Pronera, tem condições de contribuir para que o processo de democratização da educação no campo avance no país. O Pronera é uma conquista histórica da luta pelo direito à educação no campo, sendo sua política um passo fundamental para se romper com o latifúndio do saber, de maneira a tornar o conhecimento um bem de toda sociedade.
Adelino Francisco de Oliveira é professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.