A partir de um artigo da jornalista Beatriz Vicentini.
Para cada instituição de ensino, 6,5 templos evangélicos,
para cada centro de Saúde, 18,2 templos evangélicos,
e essa é a realidade das nossas favelas,
e nos perguntamos, como?!, e nos voltamos
uns para os outros, e apontamos a culpa – a quem? –
e, em nossa perplexidade ficamos paralisados,
como quem vê levantar-se o tsunami no oceano,
e não tem outra reação do que ficar parado,
porque, não importa o que façamos, seremos varridos
pela força bruta e avassaladora do fenômeno,
mas, espere!, lembremo-nos de quando tudo começou,
lembremos que fomos nós – a sociedade, a Igreja, o Estado –
que primeiro os abandonamos, e os deixamos à própria sorte,
desabastecidos de inclusão, rejeitados,
sem ter quem lhes desse a mão,
a sociedade, pelo preconceito, o Estado, por inadimplência,
a Igreja, pela ausência, logo suprida pelo discurso da ignorância,
esse mesmo discurso que alimenta de arcaismos
as mentes angustiadas de quem vive à beira do abismo,
e se aferra a um deus, qualquer deus que lhes prometa um alívio,
que a Igreja nunca lhes deu, com seus sermãos burgueses,
com seu Cristo europeu, com sua pompa etnocêntrica,
com suas imagens de um paraíso ridículo,
um zoológico onde os animais se alimentam de ritalina,
e ninguém faz sexo, ou seja, a felicidade suprema do chefe de família
(que apenas mantém a amante no anexo, num quartinho),
e da esposa, com o troco sempre a postos no bolsinho,
essa Igreja, de que tratamos agora, com suas paredes alvas e altas torres,
como a proclamar um Deus que não nos ouve,
que nunca nos ouve, porque está lá, vestido de branco,
plantado no Vaticano,
a proclamar um sacrifício inútil (mais um?),
um sacrifício que nada diz a quem já perdeu tudo,
e só quer ouvir do lobo uma mensagem de esperança,
que o resgate do fundo do poço, com mentiras,
porque a verdade, no fundo, é dura e não conforta,
porque sequer a verdade verdadeira é aquela que se apregoa,
porque uma vida com Deus nada tem a ver
com a repetição dessas fórmulas patéticas com as quais se enche a boca,
ah, mas pelo menos na favela o pastor está presente,
enquanto o padre saiu pra pescar na lagoa, a igreja está fechada,
e o diácono não atende a porta, por mais que dia
naquele que bate, sem encontrar resposta,
e que, assim, vai se atirar aos pés do pastor, bispo, bispa, pastora,
e fazer qualquer coisa que se lhe ordene,
o que inclui, em primeiro lugar, entregar, como prova de amor a Deus,
aquilo que precisaria para seu próprio sustento,
e não admira, então, que entregue a esse mesmo deus o dinheiro do armazém, ao crime,
ou à primeira casa de apostas que lhe prometa a redenção,
e assim segue esse povo, sem alento e alimento,
sem que nenhuma instância lhe dê a mão,
alvo da polícia – a nossa, naturalmente – da política, dos nossos preconceitos
e do alívio de nossas culpas, em campanhas fúteis,
que servem apenas para aplacar a consciência
de quem já se imagina no céu a dar conselhos aos anjos,
a corrigir esse ou aquele santo, a dar pitaco nas decisões de Deus,
e a negar à favela a saúde, o ensino e o lazer,
a negar-lhe a cidadania – tão pouco! –
a negar sua própria existência, mas ela existe,
e nos escapa como areia por entre os dedos,
e se mistura aos mortos que vêm dar à praia, como uma onda,
que se agiganta no horizonte, e, de repente,
não temos mais para onde fugir, e só nos resta
o temor, o terror e o medo.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.
Para conferir o artigo de Beatriz Vicentino, acesse: