É hora. Silencia o céu. Pela porta entreaberta da igreja, espio a imagem de uma mulher – coberta de véu – que chora. Não há missa? Ninguém canta? “Psssiioo, menino… É sexta-feira santa!” Minha mãe – no meu coração de criança, tão santa como a mãe do próprio divino – também chora. É hora. Silencia o céu. Ai, minha mãe! Minha nossa senhora! Minha mãe cheia de martírios alheios a prantear tristezas – no rosto a escorrer tão cinzas cores. Por que choras, minha mãe? Não chores… Mas minha mãe, prostrada no adro como num quadro, é Nossa Senhora das Dores.
Mãe de Deus cravejada por sete espadas no coração. Expio. Alguém lhe tira o véu, quatro homens lhe erguem andores, a mãe celeste dilacerada parece que vai sair em procissão. Enfim, alguém canta – um canto frio e cortante como o espectro de um raio de luz: “mãe de Jesus transpassada de dores aos pés da cruz, rogai por nós, rogai por nós, rogai por nós a Jesus”. É hora. O céu que há em mim também silencia. Minha mãe chora em perdão. O que será que fiz? Segurando sua mão lhe peço: não chores, minha mãe. Mas minha mãe chora aos pés da imagem da mãe que chora buscando o filho morto na cruz.
Tristeza contagia? Começa a romaria. Rostos calados olham para o chão. Santa Maria, quase morta de aflição, é carregada em clamores para fora da igreja. “Veja, menino! Veja!” Minha mãe me ensina o que não aprendo nem nunca aprendi, porém repito: “louvada seja!” Constrição. Oratório. O povo caminha como se caminhasse rumo a um velório. A rua agora é quem silencia – e o andor da Mãe Maria adentra pela Governador. “Minha mãe, por que só uma mulher é quem canta?” Minha mãe me aperta o braço. “Pssssiio, menino! É Sexta-Feira Santa.” A dor segue seu passo.
Na esquina do Mercado o encontro acontece, esperado. Porque, no mesmo itinerário, só que em sentido contrário, veio vindo – num caixão carregado e todo torto – a imagem do Senhor-Morto. O ar parece que para. O choro se dá em coro e só há ali uma certeza: o Largo do Mercado poderia um dia ter se chamado Largo da Tristeza. Ressurge a mulher que canta, vestida toda de preto. A dor dela é icônica. Minha mãe me ensina outra vez: menino, essa é a Verônica. “Mãe de Jesus transpassada, de dores aos pés da cruz”. A multidão chora. Minha mãe chora. A Mãe Santíssima encontrara, morto, a Jesus.
É hora. Silencia o céu. Unidas, as procissões seguem agora apenas na memória que tenho – ruas abaixo. Minha mãe não chora mais, nem tenho mais as mãos nas suas mãos. Não há mais sudário, nem mais a voz noturna da mulher que a morte de Jesus lamenta e canta. As mães – santas, marias – não procuram mais seus filhos (um que é Deus e que morreu e o outro que é homem-menino e se perdeu no meio da romaria). Quem procura pela mãe e chora em dores, então, sou eu – coração cravejado de saudade. Era a vida de verdade? Nossas mães. Hoje não há missa, minha mãe? Por que ninguém canta? “Pssiooo… menino (ainda ouço) é Sexta-Feira Santa.”
Alexandre Bragion é autor do livro “Casa Burguesa Sem Chave” e editor do DE.