Há meses temos conversado sobre o show do Paul McCartney. Te contei como sua avó aprendeu as músicas nas aulas de inglês na escola quando era menina. Como, para ela, as músicas dos Beatles traziam frescor e beleza para uma vida difícil. Vovó nasceu no sítio, família com poucos recursos e a oportunidade de cantar em sala de aula tinha um valor inestimável. Quando ela mudou para a cidade grande, vovó passou a conservar o hábito de comprar LPs. Tia Vá e eu crescemos ouvindo os álbuns dos Beatles da vovó. Eram preciosos e durante alguns anos apenas sua tia, mais velha que eu, podia colocar no toca-discos para evitar qualquer risquinho. A gente dançava, brincava, tentava cantar (como o tempo de escola da vovó). Tia Vá e eu tínhamos nossos prediletos e revezamos canções enquanto discutíamos o envelhecimento na capa e contra capa das coletâneas duplas. Tia Vá gostava do azul e eu do vermelho. Tia Vá gostava do Paul. Lembro de uma tarde de férias que a vovó estourou pipoca e juntas assistimos um filme sobre os Beatles na TV. Nós três juntas.
Quando você nasceu, entendi a importância afetiva da bagagem cultural. E do mesmo modo como a vovó me ensinou a gostar dos Beatles, decidi que seria minha responsabilidade fazer isso com você também. Sei que você está crescendo sem os álbuns espalhados sobre o chão da sala, mas foi ninada ao som de Blackbird, And I love her e Here comes the sun. Também sei que tão logo começou a prestar atenção nas músicas, encontrou sua quase xará britânica Eleanor Rigby e desde então tem sido uma de suas canções prediletas. Você não tem os encartes, mas pesquisa as letras na internet enquanto seleciona a música em aplicativos como Spotify.
E assim fomos nós três pela primeira vez a um show do Paul McCartney. Três gerações, três expectativas distintas: eu, você e a vovó. Tive medo de um possível tumulto, de você não aguentar a maratona fila/espera/show, do tédio tomar conta de você. Temi em vão. Assim como nós, o estádio estava lotado de histórias familiares e românticas, de pessoas de diferentes idades que simplesmente queriam celebrar o amor. A nossa volta, famílias, casais, grupos de amigos. Pessoas desconhecidas que, sensibilizadas por ser seu primeiro show em um estádio, cercaram-nos de carinho, conforto e zelo. Efeito Paul McCartney, hoje eu diria (efeito esse que só mesmo um Beethoven dos nossos tempos seria capaz de criar).
Quando o show começou, você deu um grito ensurdecedor, a gente sorriu. Na terceira música (Can’t buy me love) fui inundada por lágrimas e sorrisos que me levaram de volta à sala da casa da vovó e me vi serelepe dançando entre os álbuns. Era uma das músicas favoritas da sua tia Vá, da minha irmã.Ali, logo no início, entendi que estávamos em quatro e sua tia transbordava em nossos corações. Foi sutil, foi nosso. E assim como eu, outras pessoas reverenciavam em suas memórias pessoas queridas que já não estão entre nós. O próprio Paul, com simplicidade e gratidão, prestou suas homenagens a John, George, Linda… E fez com tanta beleza, generosidade e carinho. Fez permitindo-se contemplar o presente sem a fútil necessidade de enterrar a saudade, o passado, o amor vivido.Porque só quem ama entende e respeita que amor transcende tempo e espaço. E o show do Paul é assim.
Blackbird te fez procurar meus braços e ali você aninhou. De olhos fechados, simplesmente te ninei. Pouco depois vi seus pulos de alegria e surpresa quando suas músicas prediletas tocaram em seguida. Surpreendente que Eleanor Rigby tenha sido sucedida por Fuh You. Passado e presente em harmonia especialmente feito para você em uma das belas sutilezas do universo. Com Let it be o estádio se transformou em uma “revoada de vaga-lumes de celular”, você disse e cantou mais alto. Cantamos com leveza, vivemos uma poesia.
Repleta de amor, nada mais natural que você explodisse de alegria em sua forma mais pura quando tocou Live or Let Die. A catarse ganhou novas cores e vi seus olhos plenos de surpresa e satisfação. Você me abraçou forte, abraçou a vovó e agradeceu estar no show naquele momento. “É o show da minha vida!”, você falou. A gente não sabia, mas logo em seguida o estádio viraria uma única voz com Hey Jude. Um coro com mais de 40 mil pessoas entoando ‘na na’ com suas entranhas e cartazes em punho. O amor transbordou.
E como se não bastasse tanta emoção, Helter Skelter surgiu como uma redenção apoteótica. Pulei e pulamos como se não houvesse amanhã. Saí do meu próprio corpo enquanto você dizia: “É a sua, mamãe! É a sua, mamãe!”.
Foi nosso, filhota. Foi seu, foi meu, foi da vovó, foi com a Tia Vá em nossos corações. E foi de todo mundo que entende que falar de amor é cada vez mais necessário. Que falar de amor gentil, generoso, acolhedor e tolerante é transformador.
Paul também falou de direitos humanos e levou bandeira LGBT para o palco. Você viu antes mesmo do que eu e sua avó. Achou correto, aplaudimos juntas. “É manifestação política, mãe?” Eu te respondi que talvez fosse porque falar de amor e sentir empatia são coisas revolucionárias para os tempos atuais. Você sorriu e disse: “Então, é um show de amor!”
Simples assim.
Sílvia Bujokas – que é jornalista – e família!
Crônica incrível e emocionante!!!
A forma como a autora escreve nos faz viver e sentir intensamente a história.
Parabéns Silvia!!!
Arrepiada do início ao fim!
Parabéns pelo belo texto, Silvia.