Hoje pela manhã acordei com os versos de uma canção,
antiga canção, que dizia “sim, eu estou tão cansado,
mas não pra dizer,
que eu não preciso mais de você…
com minhas calças vermelhas, meu casaco de general,
cheio de anéis”, e lembro que a cantávamos
sob o guante dos militares, entre companheiros torturados, e nos imaginávamos
com nossas calças vermelhas, a tomar um velho navio,
e navegaríamos como as gaivotas ao redor do mastro de Ulisses,
e dançaríamos ao luar, embalados por um coro de sereias,
e por cigarros de raros fumos vindos das areias da Jamaica,
dos heroicos campos paraguaios, dos altiplanos da Bolívia,
e, em meio ao vapor barato das volutas que se torciam rumo a espaços desconhecidos,
onde tudo estava por ser criado,
nós amaríamos furiosamente, fulgurantemente nus,
sobre os automóveis apressados da avenida Paulista,
enquanto os centuriões e os bedéis do capitalismo
jogavam suas vidas e suas almas pelo ralo,
e jamais as buscariam, e empergaminhavam-se como cinzentos velhos papiros
onde salmos em branco não seriam nunca cantados,
nem nunca transcritos em passos de alegria,
mas apenas empilhados, enfileirados como números num dispositivo,
enquanto passávamos ante suas vidraças,
e ares condicionados, com etéreas asas juvenis,
e não cresceríamos, é claro, enquanto nos permitisse a diamba da existência,
sendo nós eternamente deslumbrados com a vida,
nos perguntando à mesa da família,
“que paraíso é esse, que só nós vemos,
que fogueiras dançamos ao redor,
que ondas nos enchem de sal marinho e sagrado,
da decomposição multimilenar de incontáveis bichos,
que suor é esse que nos cobre, que olhos temos,
que mais ninguém veria o que vemos,
quem somos nós, os inimigos do regime e da polícia?”,
e nossos pais-avós-antepassados responderiam em uníssono,
“sois os que perderão vossas esperanças, esmagados
pelo peso das circunstâncias, a que homem algum escapa,
contra quê força alguma se levanta, e definhareis
como definhamos nós, que um dia escutamos Elvis
nalgum rádio,
apenas para esquecê-lo tão rápido quanto cruza a rua o cão vadio
enquanto passam os carros”,
e lembro que lhes respondemos,
“jamais!”, com tanto empenho na voz, que hoje,
passados milênios,
estranho buscar meus iguais na multidão, sem encontrá-los, e visto meus anéis e meu casaco,
mas cruzo com generais deveras, que me olham
como aos desaparecidos do Araguaia, apenas mais um
que não atiraram ao mar, que não enterraram na praia,
eu, morto mas vivo, vivo entre os mortos do meu passado,
eu, que não preciso de muito dinheiro, graças a Deus,
e que vou descendo por todas as ruas, e ainda vou tomar
aquele velho navio, a metáfora definitiva de todos os mares,
singrando entre monstros marinhos e portos distantes,
rumo ao cabo da Boa Esperança, simbólico e desconhecido.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.