De todas as festividades religiosas, revestidas de grande beleza e profundidade simbólica, a celebração da Páscoa de Jesus Cristo, dentro do campo religioso cristão, é certamente a mais existencialmente significativa, intensa, marcante, essencial na medida em que remete e faz apelo à renovação da vida. E é mesmo fundamental que a vida se renove sempre, alcançando outras perspectivas e possibilidades, de maneira a fortalecer a esperança no porvir.
Em um tempo tão confuso e contraditório, marcado no campo político e social por uma completa inversão de referenciais valorativos, os eventos que permeiam a Paixão de Cristo, no contexto da Semana Santa, despontam como um importante farol, o mais precioso referencial, a indicar o caminho para a Verdade. Exatamente em um ambiente cultural que se desnuda e se arvora como avesso a tudo que Jesus ensinou é que sua mensagem se faz mais urgente e imprescindível.
Talvez o maior risco que se corra hoje seja, justamente, o obscurecimento e a obliteração de verdades essenciais, eternas, reveladas na pessoa de Jesus e em seu movimento de discípulos. Em um momento em que desponta a intolerância e a surdez a toda argumentação, em que a violência se apresenta como justificável e o fundamentalismo passa a ser legitimado como postura razoável, a Páscoa de Jesus, definitivamente, tem muito a dizer. Torna-se, então, urgente se voltar às fontes primeiras da genuína tradição cristã, revisitando, sobretudo, os Evangelhos, vislumbrando se alcançar a força e inspiração necessárias para que a existência, em todas as suas dimensões, possa se reinventar.
Interessante, neste sentido, é montagem cênica, por quase três décadas, da Paixão de Cristo, do Grupo Teatral Guarantã. No segundo ano sob a direção de Vivine Palandi, o espetáculo converte-se em um contundente convite para se fazer memória dos eventos fundamentais a envolverem a Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo. Em uma leitura hermenêutica crítica, aberta, contemporânea e muito bem fundamentada, o espetáculo procura revisitar narrativas centrais da trajetória de Jesus Cristo e de seu movimento de discípulos.
Com a expressividade e impactante empatia de um Cristo cheio de alegria, que sorri largamente em muitos momentos e se solidariza com a dor de seu próximo, o espetáculo aposta na renovação existencial, a partir da defesa intransigente da vida e da justiça. Em um claro processo criativo, Vivi Palandi, ao mesmo tempo em que busca fidelidade aos textos sagrados, também procura atualizar a mensagem do Cristo, que apresenta o amor e a justiça como princípios basilares para a vida.
A representação cênica da Parábola do Semeador não deixa de ser um contundente convite para que cada indivíduo seja o terreno bom, que acolhe e germina a semente do amor e da justiça. Os frutos bons aparecem na forma de uma nova existência, tocada pela solidariedade, e de outros arranjos sociais, com estruturas sedimentadas no princípio da igualdade fundamental dos filhos de Deus. Reforçando essa linha de compreensão hermenêutica, a encenação da multiplicação dos pães aponta a partilha e o comprometimento com o outro como vias de libertação, refutando perspectivas de competição e de acumulação. Nesta mesma direção interpretativa, torna-se imperativo mencionar a passagem cênica do Sermão da Montanha, com a explicitação das bem-aventuranças: “Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados!” (Mt 5,6). A esperança é clara: a justiça prevalecerá. É preciso então perseverar na luta, na resistência, na fé, pois a ressurreição triunfará contra todas as formas de opressão, injustiça e morte. Não é possível calar a voz dos que clamam por justiça e paz. A ressurreição de Cristo significa a vitória definitiva do amor e da justiça. Não há derrota para aqueles que resistem, lutando pela Verdade: recriar relações existenciais pautadas na solidariedade e no amor, em uma estrutura de sociedade alicerçada na justiça e no direito.
Os graves desvios que marcam a decadência das sociedades no contemporâneo aparecem, ao longo dos relatos da Paixão, superados pela força inspiradora das palavras e práticas de Jesus. Assim, a traição, como método de articulação política, a via da violência, como contraposição aos rivais, o preconceito e a exclusão como formas de organização social, as múltiplas maneiras de opressão e exploração do pobre, da mulher, da criança, do estrangeiro (refugiado), dos enfermos são veementemente negados e suplantados por um amor que transforma e renova todas as coisas, instaurando o reino da justiça.
Em certo sentido, presenciamos um tempo de encruzilhada civilizacional. Há um discurso diabólico – na medida em que divide e separa –, demarcado pelo ressentimento e ódio, a propor a aniquilação do outro e a estruturação de uma sociedade indiferente, alheia aos princípios de justiça, solidariedade e bem coletivo. Mas há, em contraposição, a proposta que emerge de uma profunda experiência da Páscoa do Cristo, reafirmando a comunhão, a solidariedade, o amor, a renovar a existência em uma perspectiva libertadora. A vida, quando alicerçada no amor e na justiça, é capaz de sobrepujar e vencer todas as formas de morte e opressão.
Que a força da memória da Paixão de Cristo – tema central das celebrações litúrgicas em torno da Semana Santa –, revisitada também mediante as apresentações cênicas do Grupo Guarantã, no espaço do Engenho Central de Piracicaba, possa inspirar um novo tempo, no qual todos tenham vida e que ela seja abundante em possibilidades, para que se cumpra toda justiça, como desejo o próprio Cristo.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia pela Universidade Católica de Braga – Portugal – e professor no Instituto Federal (IFSP), campus Piracicaba.
Obrigada, Adelino, por nos devolver a esperança, com palavras plenas de sabedoria, sensibilidade, espiritualidade, força.
Que Cristo, com sua Ressurreição, nos ilumine caminhos de justiça e paz.
Feliz Páscoa.