Na mentalidade do mundo antigo, a ritualização de um mito, a encenação de um evento considerado exemplar consistia como um imprescindível artifício para se perpetuar e enfatizar princípios considerados como essências, regras de comportamento, modelos de conduta. O rito ou a representação não só contemplava a função de manter viva uma determinada experiência fundante e original, como também assumia a perspectiva de criar hábitos, definir costumes.
Em período da Páscoa, as igrejas cristãs, por meio de suas liturgias, procuram mergulhar na vivência ritual dos últimos passos de Jesus, buscando retomar seu significado para o contemporâneo. Reviver o tempo de Jesus, percorrer seus caminhos, trazer à consciência suas palavras, a contundência de sua mensagem, a atualidade de seus ensinamentos, talvez seja isso e um pouco mais o que vislumbra também alcançar o Espetáculo Paixão de Cristo, encenado no icônico espaço do Engenho Central, com roteiro e direção de Raul Rozados.
Ao longo da apresentação cênica do Guarantã, temas fundamentais do Movimento de Jesus se projetam, em uma hermenêutica que convida a repensar os valores e comportamentos atuais. A riqueza, o vigor e a profundidade teológicas das narrativas bíblicas sobre o ministério de Jesus são revisitadas nos recortes interpretativos de Rozados, que sem a pretensão de esgotar a polissemia do tema, vai propondo, com os recursos próprios da arte teatral, releituras sobre a Paixão.
A estética da cena que retrata as tentações de Jesus no deserto impacta tanto por sua performance criativa quanto por sua profundidade crítica. Sob o mundo, estilizado em um cenário que contempla um grande mapa, Jesus se depara e se confronta com a transparência do mal, representada por seres disformes, dissimulados, satíricos, zombeteiros. A contemporaneidade das tentações, em escopo mundial, procura corromper toda expressão de integridade humana, projetando as benesses de um poder sem limites. A sedução da riqueza e os apelos de prazer aparecem como atalhos, a prometerem uma vida sem sofrimentos nem renúncias, uma coroa sem espinhos. As forças do mal tripudiam sobre o mundo, que revela total ignorância e incompreensão a uma mensagem de amor, paz e transcendência.
A dimensão do discipulado feminino, que encontra na sensibilidade, força e convicção de Maria sua expressão mais alta, também se destaca nas pesquisas de Rozados. A personagem de Maria não deixa de contemplar tantas outras mulheres que, a exemplo dos doze, também ousaram deixar tudo para seguir Jesus bem de perto. Aos pés da cruz, já com o divino filho morto em seus braços, Maria reproduz o comovente e sublime gesto de piedade. A cadência da sonoplastia, as luzes, a trilha sonora suscitam sentimentos, inspiram para o que há de mais divino e elevado. Em cenas finais novamente o protagonismo feminino ganha evidência: cabe às mulheres o anúncio querigmático e entusiasmado do Ressuscitado.
No dinâmico roteiro da Paixão de Cristo, sob a ótica de Rozados, desfilam cenas, representações contundentes a projetarem-se como um cortante punhal, em um cotidiano que demonstra ter abandonado há muito a Verdade anunciado por Cristo Jesus. A força impactante da representação cênica da passagem da mulher adultera alcança uma atualidade sugestiva e desesperadora, em um contexto tão marcado por hipocrisias e intolerâncias. Em outro momento ganha relevo a emblemática traição de Judas, a decepção e incompreensão diante de um projeto maior, que remete a uma concepção da política como serviço e em prol da vida. Em um primeiro plano os tormentos de Judas revelam sua incapacidade de alcançar a dimensão transcendental contemplada no Movimento de Jesus – tantos séculos depois o mundo continua atônito e perplexo diante da radicalidade desconcertante do convite de Jesus.
A multiplicação dos pães, a presença singela de tantas crianças, a postura de zelo no Templo, os diálogos sobre os sinais de Jesus continuam, ao longo do Espetáculo, a chamar a atenção de um mundo perdido, que simplesmente se esqueceu, quase que totalmente, das possibilidades de uma vida quando receptiva à partilha e à comunhão fraterna. Nessa mesma cadência, a sagrada ceia com os discípulos desponta como a prefiguração de uma vida de serviço e entrega, antítese maior de todas as tentações, ilusões que esfacelam a existência no contemporâneo.
Em interação com o Espetáculo ganha visibilidade também a exposição “Olhares e Perspectivas da Paixão”. Dimensões teológicas essenciais alcançam cores, vida e significados nas representações icônicas de Gabriel Chaim. Nas telas de Chaim, pintadas a partir de rica interlocução com a Paixão de Cristo do Guarantã, deparamo-nos com prismas que tematizam o lamento e a perplexidade diante do sacrifício da cruz; a contemplação dos símbolos cristãos; a teofania do batismo no Jordão; a experiência de ascetismo e as tentações no deserto; a emblemática traição; o zelo e a indignação de Cristo no templo e a via do homem do sofrimento.
Retomando as concepções da Antiguidade quanto à força simbólica e representativa do ritual, que o Espetáculo Paixão de Cristo de Piracicaba, em compasso com as belas liturgias pascais, possa inspirar mentes e recompor condutas. Que a serenidade, a paz e a verdade essenciais, que ecoam dos gestos, atitudes e palavras de Jesus – projetadas nas atuações cênicas – alcancem a interioridade do humano, fazendo brotar o novo, com distinta mentalidade, a aspirar sempre à transcendência na imanência existencial.
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Adelino Francisco de Oliveira é filósofo e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo.
Evoé! Muito obrigado Adelino!