Paideia: educação e sociedade

Antes de tudo, a educação não é uma propriedade individual, mas pertence por essência à comunidade.

 

Werner Jaeger – “Paideia”

 

Diante da grave crise em que se encontra a sociedade contemporânea, mergulhada e submersa em um esgotamento econômico – decorrente das perversas políticas neoliberais –, e em uma profunda e intensa decadência ético-moral, a educação descortina-se como o nó górdio, talvez o único caminho capaz de abrir perspectivas para um mundo estagnado e perplexo. Mesmo os jovens já se perdem, seduzidos na mais tenra idade, pelo fascínio do consumo tecnológico e pelo hedonismo, revelando a lacônica solidão e desamparo da ausência de referências. A dramaticidade do quadro social contemporâneo delineia os contornos de uma face humana desfigurada pelos sinais da miséria material e espiritual, projetando traços de um rosto sombrio e corrompido, curvado ao ideal de riqueza a qualquer preço.

De fato, o tema da educação configura-se como central para se vislumbrar novas dinâmicas sociais. Torna-se fundamental e imprescindível promover um profundo resgate do sentido do que é ser aluno. Os jovens – todos os jovens, mesmo os que não se encontram inseridos no ambiente escolar – devem ser concebidos como legítimos alunos, na medida em que ainda carecem de maturidade intelectual e exigem extrema atenção e cuidados. Ser aluno consiste em assumir o lugar e papel de discípulo. A sociedade, com a totalidade de suas instituições e agentes sociais, deve abarcar a missão de guiar os seus jovens alunos – como um mestre conduz seus discípulos – na árdua trajetória do processo de formação educacional, a contemplar a finalidade última da humanização, a plena inserção do aluno no elevado arcabouço cultural da civilização.

Quando se aborda a questão educacional logo despontam uma pluralidade de análises e conjecturas, evidenciando a densidade e complexidade do tema. A discussão fundamental configura-se na definição do lugar e objetivo do processo educacional. Há proposições meramente técnicas e instrumentais, a apontarem e exaltarem a tecnologia como a grande tábua de salvação da educação. Argumenta-se, também, que a formação deve estar unicamente atrelada à perspectiva do mercado. Ou seja, prepara-se o aluno a conquistar um espaço em renomada universidade, o que lhe garantirá e reservará o cabedal técnico-prático para assumir uma profissão próspera e promissora.

Nesta perspectiva, todo o enfoque da educação acaba por privilegiar o sucesso nos mais concorridos vestibulares do país. O aluno é então preparado para competir e vencer. Há, no entanto, abordagens mais críticas e problematizadoras, a enfocarem a temática educacional a partir de três prismas fundamentais: o viés mercadológico, que reduz as instituições de ensino em meras empresas e os alunos em clientes consumidores; os limites das condições de trabalho do docente – enleado em rotinas burocráticas e reduzido a dimensão de operário –, e o perfil do próprio aluno, desmotivado diante de um ambiente educacional que não encanta nem desperta atração, em contraposição às seduções de uma sociedade high-tech.

Sob inspiração da Paideia grega, desvela-se imprescindível repensar a educação, tomada em sua totalidade – seu viés humanista, ético, político e técnico. A articulação destes elementos pode conceber a formação de um aluno que, refletindo a competência teórica e técnica, fortalece o compromisso ético e moral com o outro e com a sociedade. Assim, o conteúdo programático da formação deve inspirar-se no ideário de um aluno sensibilizado para as necessidades do mundo. Sua formação pode ser entendida como a possibilidade de serviço ao próximo e à coletividade.

Muito além de atender a interesses meramente pessoais, alicerçados no sucesso, na vitória individual e na ganância, o aluno deve estar voltado ao mundo e à vida. É iminente formar-se para interagir com os grupos e com o coletivo: trabalhar e atuar para corroborar com o ideário da solidariedade e do conhecimento, preferencialmente comprometido com o presente e o futuro da humanidade. O processo educacional deve contemplar o despertar das potencialidades do aluno – a criatividade, a arte, a imaginação, a ciência, a filosofia, a espiritualidade etc. Tal perspectiva, não deve significar, porém, um descuido com o preparo acadêmico do aluno. Ao contrário, aquele que goza de uma formação densa e crítica – próprio da complexidade do contemporâneo – tem todas as condições de compreender e resolver questões postas de maneira mais simples e objetivas. No entanto, aquele que apenas dispõe de uma educação técnica e objetiva, não consegue alcançar uma percepção mais complexa e engajada da realidade.

Neste esteio, o professor – no singular papel de mestre – desvela-se como intermediador entre o aluno e o objeto de conhecimento – que, em sentido amplo, alcança o sentido da vida e a própria realidade do mundo. Não cabe ao professor apenas transmitir conteúdos e sim qualificá-los, orientando o aluno para que tenha uma postura integra – tanto na dimensão ética quanto na política – diante da realidade.

A escola, preocupando-se em formar um aluno íntegro, deve colocar o sujeito humano no centro de suas atribuições educativas. Privilegiando um ensino crítico e problematizador – que forme para a cidadania – e, concomitantemente, combatendo visões fragmentadas – que fundamentem posturas alienadas. Coerente com sua missão de educar – e não só repassar informações – a escola deve, então, configurar-se como espaço, privilegiado, de encontro com o saber, de encontro consigo mesmo – em um movimento de fortalecimento da autoestima – de encontro com o outro – a vivência da sociabilidade na alteridade – e de encontro com a dimensão ético-político, vislumbrando o bem coletivo.

 Diante de outros espaços formadores, a escola deve avançar para um papel de interlocução, no sentido de troca e intercâmbio de experiência e de conhecimento, na interação de valores e princípios comuns. Neste caso, urge-se a preservação do diálogo e dos encontros, promovendo a perspectiva a que os outros espaços formadores venham a se configurar como extensão da escola, possibilitando as amplas e diversas experiências para os alunos.  

De maneira contundente, o processo de formação deve avançar no fortalecimento de valores fundamentais, a constituírem-se no ideal de justiça social, no desejo de exercício da cidadania, na tolerância às diferenças, no espírito humanitário de respeito e unidade de princípios e crenças, na ação engajada de participação nos rumos políticos da nação e civilização, no amor entre os homens e na defesa da vida e da dignidade. Tal dinâmica formativa pode, não obstante, alicerçar-se talvez em cinco critérios essenciais: primeiro, o critério da justiça, em seguida, o da verdade, depois, o critério da compaixão, seguido pelo critério da solidariedade e, por fim, o critério da tolerância. É preciso, sobretudo, conceber o processo educacional como uma Paideia, a articular a formação do aluno de maneira complexa e integral, favorecendo com que suas potencialidades aflorem e se tornem realidade. É imprescindível e urgente que a dinâmica educativa envolva toda a sociedade, em um vasto movimento formativo, visando cultivar nos jovens alunos – a exemplo da Paideia grega – os princípios basilares e o rico legado da civilização, suplantando, por esta via, toda perspectiva de decadência e crise.

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Adelino Francisco de Oliveira é mestre em Ciências da Religião e professor de Ética e Filosofia da Faculdade Salesiana Dom Bosco.

7 thoughts on “Paideia: educação e sociedade

  1. Pensar a educação dessa maneira humanista e integral, embasada em um profundo conhecimento do ser humano, com suas necessidades, direitos e obrigações, e seu engajamento em um processo maior na cultura de sua comunidade e seu legado para a civilização, me fez pensar na responsabilidade daqueles responsáveis pela educação no nosso país. Não quero me frustar. Quero manter minha esperança em um futuro pleno de dignidade para nosso povo.
    Parabéns professor Adelino!

  2. Prezada Sra. Zilma Bandel,

    Agradeço por sua qualificada interlocução. De fato nos deparamos com um quadro estrutural no campo educacional que não possibilita muita esperança. Talvez o exercício do debate e da discussão crítica e problematizadora seja um caminho para superarmos o atual estado de coisas. Vamos avançando, ao menos no campo da reflexão…

    Esteja bem!

  3. Estimada Carla Ceres,

    Gostaria, na verdade, é de ao escrever sobre temas tão densos ter o dom da leveza e sensibilidade, características sempre frequentes em seus textos… (risos).

    Esteja bem!

  4. Brilhante como sempre em suas colocações. O que nos deixa tristes é que a sociedade pensa em educação de modo estritamente capitalista em busca de poder e dinheiro e se esquece da essencia do conhecimento em si e dos valores, mas essa diversidade de opiniões e pensamentos nos abre a discussões e reflexões que nos aponta ao crescimento.

    Um forte abraço, esteja bem…

  5. Prezado Naldo,

    Você pontua muito bem, a redução da educação à mera mercadoria, tornando alunos em clientes, compõe-se como um caminho terrível, que trará difíceis consequencias para toda sociedade. A reflexão ainda é uma importante forma de resistência a este estado de coisas. Obrigado pela qualificada interlocução.

    Esteja bem!

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