Ouvido absoluto – por Alê Bragion

Na escola, o maestro o anunciara como a um gênio, um novo Mozart, desde que revelara ao mestre que ele assoava o nariz em grave sol sustenido. Ouvido absoluto! – exclamou entusiasmado o regente. Daquele dia em diante, sofrera os mais inesperados testes. Ao piano, confrontavam-lhe com combinações cromáticas inesperadas. Na sala de aula, os colegas a todo instante produziam os mais diferentes ruídos e cobravam-lhe o tom. O giz riscava-se na lousa em si bemol agudo. O sinal do intervalo em fá natural. A diretora berrava ora em dó sustenido ora em mi natural estridente. Um lápis caindo ao chão, o arrastar de pés sobre o piso, a vidraça batendo ao vento – tudo lhe era absolutamente cobrado na pauta musical. Mas ele se divertia. Em terra de cegos (e surdos) tornara-se um artista de primeira. Um novo Mozart! Nada menos do que isso lhe vaticinara o maestro.

Inversamente proporcional ao seu ouvido absoluto era sua absoluta dificuldade motora – pois nada lhe parecia mais difícil do que articular as duas mãos ao mesmo tempo. Capaz de dar a nota do pio de um pardal pousado num galho distante, não conseguia coordenar seus próprios dedos sobre um instrumento. Sentaram-lhe ao piano, e sua aventura não passou de uma escala vagarosamente arpejada. Deram-lhe um violino, e seus braços cruzaram-se sobre o peito num movimento aleijado. Trouxeram-lhe uma viola, um violão. Nada. Descobrira então que não tinha mãos, tinha gengibres atrofiados. Sua ascensão ao Olimpo da música estava condenada -sendo que nem mesmo o canto lhe restava, pois era fanho como um marreco. Mesmo assim, era feliz. Deus lhe dera um dom raro – e seu ouvido absoluto haveria de lhe trazer a felicidade anunciada por seu mestre.

Ainda jovem, casara-se com a dona da voz mais suave que até então ouvira. No entanto, certo era que não havia prestado muita atenção às qualidades gerais da amada – pois o que o comovera nela fora a escala sempre natural de sua voz de cítara. Entre tons e semitons, a jovenzinha ascendia e descendia a voz como um pastor de presépio a anunciar na flauta o nascimento do Cristo. Ele, como uma ovelha, deixava-se levar pela doçura de seu amor cromático e pastoril. Então, achara mesmo que seu velho mestre acertara a profecia: seu ouvido absoluto parecia garantir-lhe o prazer reservado a poucos.

Mas não é a vida senão a comprovação de que não se pode crer em vaticínios? Feita esposa, a flauta canora de seu amor transformara-se em tuba belicosa e grave – e de seu ventre sonoro de mulher expurgaram-se as vozes do próprio demo: três crianças birrentas que se esgoelavam em conjunto, num trítono mais diabólico que os das sonatas de Tartini. Ele andava em desespero. Na sala de casa, a mulher imperava em tons maiores. Nos quartos, os rebentos berravam atonantes. Na rua, carros e motos zuniam agora em glissando. Na praça, o povo cantava uma ópera de Schönberg. Aturdido, perdeu-se um dia ante a hipnotizante buzina em fá sustenido de um ônibus em alta velocidade que o lançou sobre o pentagrama da calçada.

Socorrido, acordou num hospital, em pleno silêncio, a cabeça latejando. Ao pé da cama, a mulher vociferava e esbravejava sem que ele pudesse ouvi-la. Estava surdo. Absolutamente surdo. E ao descobrir-se assim, em confortável e inesperada pausa, olhou aos céus e deu graças. Ao diabo o velho maestro! – disse para si. Agora sim tinha um ouvido absoluto – absolutamente feliz.

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Alê Bragion é coordenador do Diário do Engenho

 

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5 thoughts on “Ouvido absoluto – por Alê Bragion

  1. kkkkk Pobre marrequito fanho! Devia ter virado cantor sertanejo. Aí sim, ia querer ficar surdo bem antes. Seria legal você ler essa crônica num Educativa nas Letras, Alê. Ela é ótima e os seus trabalhos quase nunca aparecem lá. Tremenda injustiça! 🙂 Beijos!

    1. Carla, Fernanda e Ivana!

      Obrigado pelo carinho e pelos acessos aqui no D.E. Vocês fazem parte deste projeto – e ele também é de vocês!

      ps: Carla e Fê. Agradeço pela sugestão quanto ao Educativa nas Letras. Mas prefiro – por ser cuidadoso e não legislar em causa própria – dar espaço aos textos dos autores “de verdade” – como vocês!

      Abraço!

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