No calor da acirrada disputa eleitoral para a Prefeitura de São Paulo, no longínquo 1985, o jornalista Claudio Abramo escreveu texto que jamais saiu de minha memória: “Todos somos maconheiros”. Era uma resposta à campanha de desqualificação moral que recaía sobre Fernando Henrique Cardoso, acusado pelo concorrente Jânio Quadros e por segmentos midiáticos e sociais de não só ter provado a erva maldita como, ao sugerir a descriminalização de seu uso, representar a banda degenerada da sociedade.
O processo civilizatório nunca pavimentou um caminho suave na História. Por isso sempre foi necessário eleger demônios, hereges e desqualificados: escravos, servos, mulheres, indígenas, trabalhadores pobres, homossexuais, minorias religiosas, drogados, comunistas etc. O exercício sempre foi relativamente trivial: atribuir ao outro as mazelas da sociedade, de modo a justificar eticamente a perseguição.
Mas se direitos foram conquistados é porque houve luta e resistência à opressão, e a Modernidade trouxe consigo os valores da igualdade, da liberdade e da tolerância. Desde então vivemos sob o fogo cruzado entre duas escolhas: civilização ou barbárie.
Abramo percebeu a gravidade do problema e tomou partido naquele momento crítico. Escolheu a civilidade, proclamou-se maconheiro e chamou os democratas à responsabilidade. Mais ainda: denunciou a hipocrisia de uma sociedade que vê no outro os motivos de sua desgraça. Longe de um gesto banal, convocou os que amavam a liberdade para vencer o caminho das trevas. E não foi um aceno de fácil solução, pois sua convocação era dirigida a tribos que rivalizavam na sociedade, na política e nas eleições.
O tempo passou e o alerta permanece: onde estarão nossos democratas?
A atualidade da advertência se repete agora de forma dramática e impiedosa contra Lula. O ódio contra este personagem e tudo que ele representa promoveu o ressurgimento de demônios antes adormecidos. Não se trata de legítima pluralidade de opiniões e tampouco de processo judicial idôneo. O veredito já havia sido proclamado porque, como acontece na História, bastava nomear o inimigo. A ação de corporações incrustadas no Estado – Judiciário e Ministério Público à frente – e a narrativa dominante na grande mídia se encarregaram de torná-la “legítima”.
Para sedimentar o caminho, uma pitada de cada ingrediente fermentador: escolha minuciosa de um alvo e sua criminalização; demonização da política; fratura e manipulação das instituições; propaganda maciça; demolição da autoestima nacional; vistas grossas à simbologia e a acenos fascistas; fulanização seletiva da corrupção; e, claro, muita ideologização para desqualificar geneticamente o Estado e assim (re)abrir um ciclo de diminuição de direitos e garantias individuais e coletivas.
É de se perguntar: onde estavam nossos democratas? Ainda não perceberam que nossa democracia opera com déficit de legitimidade? Não se deram conta de que a repactuação da nação requer fruição de ideias, debate programático e liberdade para que suas principais lideranças e correntes políticas possam buscar o que falta neste momento crítico: legitimação pelo voto popular?
Nossos democratas se calarão novamente mesmo depois de o Comitê de Direitos Humanos da ONU concluir que devam ser assegurados a Lula seus direitos políticos, inclusive de ser candidato? Esta resolução reconhece que “os fatos indicam a possibilidade de dano irreparável aos direitos do autor”, daí a exigência de que “todos os recursos sobre sua condenação tenham sido completados em procedimentos judiciais imparciais e sua condenação seja definitiva”. A propósito, nada diferente do que está escrito na Constituição brasileira: “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (Art. 5º, § LVII).
Nossos democratas não compreenderam que conflitos políticos se resolvem no âmbito da política? E que, em democracias, cabe ao povo delegar seu voto e decidir quem governa em seu nome?
O impeachment de Dilma Rousseff se fez sob o argumento do “conjunto da obra”, portanto, prometia não se limitar à destituição de uma presidente, ou seja, implicaria impor uma agenda à nação. E assim vem sendo feito.
O governo de Michel Temer assumiu fielmente os compromissos de uma agenda liberalizante e regressiva. Quatro medidas sintetizam essa orientação: 1) aprovação de lei que limita os gastos públicos e congela o investimento social por vinte anos (Emenda Constitucional 95), a pretexto de conter o déficit público; 2) aprovação da Lei nº 13.365/2016, por meio da qual foi revogada a garantia legal de que a Petrobras tenha exclusividade na operação das jazidas de petróleo da camada Pré-Sal; 3) reforma da legislação trabalhista (Lei nº 13.467) que fragilizou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), legislação paradigmática do período varguista, e que consagrou o princípio do “negociado sobre o legislado”, enfim diminuição da proteção social aos trabalhadores; 4) proposta de emenda constitucional que impõe a reforma do sistema previdenciário mediante aumento da idade e do tempo de contribuição.
Em resumo, tratou-se de promover um tipo de “modernização” em que a liberalização econômica e a perda de direitos e conquistas dos segmentos de baixo da pirâmide social oferecem a contrapartida para a inserção do país ao sistema internacional capitalista do século XXI. O calcanhar de Aquiles desse roteiro consiste na manutenção dos compromissos com o sistema financeiro, cuja dívida pública vem sendo meticulosamente honrada.
Tudo está em xeque porque caprichosamente a democracia teria a chance de se refazer e se reconstruir por meio do processo eleitoral. Manter congelados os gastos sociais por 20 anos? Tomar o ajuste fiscal como dogma ou reconstruir caminhos para o desenvolvimento com geração de emprego e renda? Admitir que o Judiciário continue politizado e tomando decisões que deveriam ser do domínio das instituições políticas ou aperfeiçoar o sistema decisório? Eleições servem precisamente para decidir sobre esses dilemas, aferir a vontade popular e dotar os governantes de legitimidade.
A inépcia e a omissão de nossos democratas têm se revelado trágica, não compreendem que enfrentar o déficit democrático requer repactuação em torno de valores, normas, instituições e procedimentos para que assim se possa recuperar a confiança e a legitimação dos que aspiram dirigir o país e conduzir a nação.
Se for verdade que a fortuna desta nação parece estar nas mãos de nossos democratas, teremos que reinventá-los, pois já não contamos com Claudio Abramo, Dr. Ulysses, Franco Montoro, Severo Gomes, Mario Covas e tantos outros. Tempos sombrios, é verdade, e que exigem muita imaginação e criatividade, mas também muita luta e o bom combate.
Jefferson O. Goulart é cientista político e professor universitário na Universidade Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Excelente texto!
Este texto traz grande contribuição para reflexão do momento histórico que vivemos, onde a democracia se fragiliza e o processo de barbárie supera o de civilização.