Jesus, o Cristo (o Ungido) é uma criatura singular, dada a contradição de seu ser, ao mesmo tempo homem e Deus. Como Deus, além-mundo, inexplicável somente pelas lentes da razão. Como homem, histórico, de carne e osso e sangue nas veias, é insuficientemente compreendido pela abordagem estritamente teológica. Quem é ou foi Ele (ou ele)? E a pergunta tem que ser formulada assim: quem é (tendo ressuscitado e estando, portanto, vivo, hoje, sentado à direita de Seu Pai) ou quem foi (tendo morrido na cruz e se tornado uma duradoura história inventada por seus seguidores)?
Essa questão – quem é ou foi Jesus? – não é, como pode parecer à primeira e preguiçosa vista, um assunto apenas para pessoas de fé, cristãs, mas uma inquietação relevante para todo aquele que não se contenta em simplesmente viver, mantendo à distância o eterno enigma: o que somos, de onde viemos, para onde vamos, como podemos encontrar o nosso melhor para nós e para o mundo enquanto somos? Sim, porque a figura do Cristo é um espelho para onde olhar quando essas questões são encaradas, tenha-se ou não algum tipo de fé.
Pensa-se que quando se vai em busca do Cristo-homem, desvia-se do Cristo-Deus e vice-versa. Parece não haver possibilidade de juntar as duas partes numa única “peça”, a não ser mediante a fé, que abdica de explicações racionais. Mas não se pode esquecer que não existe explicação histórica nenhuma que tenha encontrado e apresentado um mundo, um lugar ou um tempo em que os seres humanos estiveram livres de um olhar para além de si. Ou seja, qualquer História que pretenda isolar o homem de suas crenças, das histórias fantásticas que conta de si mesmo, das fabulações e mitos, não será, de fato História, mas um tipo de racionalização que “racionaliza demais”, portanto desumanizando o próprio homem, lançando-o a um abismo, em vez de permitir que ele permaneça à beira de um, porém mirando o firmamento, os astros, o que está acima dele e que talvez o explique mais do que tudo ao seu redor, em sua ânsia por transcendentalidade ou simples amparo.
Li Zelota: A vida e a época de Jesus de Nazaré, de Reza Aslan (Rio de Janeiro: Zahar, 2013, 303 p.) entre 31/08 e 02/09 de 2014. Refiz a leitura, mais concentrada e atentamente, passados dez anos (de 17-19/08/2024), sem motivo especial, espantado por perceber que a primeira leitura tivesse acontecido há tanto tempo. Este é, para mim, um livro maravilhoso, pois entendo que o esforço analítico que nele se faz – de buscar o histórico, com dúvida metódica, naquilo que se tornou lendário ou dogmático – é um empreendimento gratificante, pondo em movimento mente e espírito em fuga do lugar-comum.
A tese sustentada por Aslan é muito interessante: 1. A Igreja abandonou o Jesus nazareno (histórico) em favor do Cristo transcendental (fundamento de uma religião), o que 2. Abrandou sua figura, transformada de um revolucionário (zelota ou essênio) em pregador da paz (em vez de “olho por olho”, “oferece a outra face” ao agressor); e 3. Paulo de Tarso foi quem mais contribuiu para isso, ele que não conviveu com Jesus como apóstolo e, portanto, não o conheceu senão em “revelação”.
Esta tese emergiu de vinte anos de estudos do autor, abordando variadas fontes, bem documentadas no livro. Ao argumentar e demonstrar suas conclusões, Aslan admite a imensa dificuldade para efetivamente localizar e devidamente identificar e caracterizar o homem Jesus, pois o que há a seu respeito é o que dele disseram, com muitas lacunas e contradições, mesmo nos documentos mais possivelmente verossímeis, escritos a muitas mãos e traduzidos e retraduzidos para tantos idiomas. Aslan recorre, portanto, na tentativa de fugir a esta dificuldade intransponível, aos elementos característicos da época daquele homem, para então esboçar um possível indivíduo tal como poderia ter sido Jesus. Nisso, o que mais salta aos olhos é que ele foi um judeu descontente com a dominação do seu povo pelos romanos, voltando-se contra ela (daí ter sido, possivelmente, um zelota ou um essênio, grupos que assim se comportavam). Tudo o mais teria sido decorrência do que seus apóstolos e futuros adeptos (acima de todos Saul de Tarshish ou Saul bem Hillel, Paulo de Tarso, para os romanos) teriam construído para sustentar o surgimento e disseminação do que viria a ser o cristianismo e, posteriormente, a Igreja Católica, tanto a Ortodoxa como a Católica Apostólica Romana.
Terminada a leitura de Zelota, lembrei-me de que havia lido, parcialmente (302 páginas), há muito (setembro de 2014), O grande amigo de Deus, de Taylor Caldwell (Rio de Janeiro: Record, 2005, 22ª. ed., 700 p.). Não concluí a leitura, naquela ocasião, incomodado pelo perfil conservador da autora, pela natureza um tanto “quadrada” dos personagens, pela artificialidade dos diálogos e pelas cansativas e desnecessárias descrições dos cenários. Mas resolvi me livrar desta pendência (como costumo fazer em relação a textos que não me agradam – iniciados, são concluídos, em algum momento), também com o intuito de ir mais adiante no tocante à figura de Paulo de Tarso. Li a obra toda de 19 a 25 de agosto de 2024.
O interesse se concentrou em receber, na totalidade, o que Caldwell se propõe a oferecer em seu livro, que ela diz (e parece verdade) ser resultado de muito estudo e pesquisa: uma visão de Paulo de Tarso como homem mergulhado em contradições e angústias – um atormentado, mais do que um intelectual que foi fundamental à consolidação e disseminação do cristianismo no mundo. Trata-se, pois, de uma biografia romanceada, que cativa, apesar dos incômodos antes mencionados quanto ao estilo. Carrega Paulo pelas mãos, do nascimento à morte, passando pela famosa conversão, no caminho para Damasco. Um rico judeu, de família influente, ele, desde criança foi, dir-se-ia hoje, um fundamentalista, dogmático, intransigente, apesar de, na adolescência e juventude, ter sido ensinado ao mesmo tempo por um rabino e um grego descrente e sensualista, num ambiente familiar e social bastante cosmopolita e plural. Paulo inicialmente tomou o Nazareno como um impostor ignorante, mais tarde perseguindo seus seguidores como blasfemos, a mando de Caifás e Pilatos. Por isso, depois de convertido, caiu em isolamento: os cristãos desconfiavam que fosse um espião entre eles, enquanto os judeus o viam como exageradamente correto e pouco afeito ao “confortável” domínio romano, levado a cabo com bastante tolerância às práticas e, sobretudo, aos interesses dos ricos descendentes de Moisés.
Em O grande amigo de Deus, Paulo, menino, encontra Dacyl, uma escrava grega, com quem tem um filho,apelidado Bóreas, que mais tarde irá adotar, como Enoque ben Saul, depois de descobrir que o avô do menino, seu pai, em segredo, providenciara o sustendo da criança, sem dizer ao filho que sabia de sua aventura, de seu pecado (que o atormentava secretamente); também tardiamente se apaixona por uma mulher (Elisheba), sem nunca desposá-la, ela que muito antes lhe havia sido oferecida em casamento, recusada sob o argumento de plena dedicação a Deus. Paulo teria sido um notório misógino, e não um homossexual enrustido, como alguns suspeitaram – no mínimo, um judeu preconceituoso com relação ao feminino, assim como o era com relação aos pobres desprovidos de inteligência e espírito. Era, sobretudo, um infeliz, avesso a alegrias, pequenas ou grandes, apesar dos apelos de Aristo, seu mestre grego, escravo liberto de seu pai, que por ele tinha grande apreço.
Paulo era, portanto, bem a “cara” do catolicismo um tanto castrador e admoestador de seus fiéis, fonte intelectual de catecismos domesticadores de crianças, crismas subordinadoras de jovens e matrimônios sacramentadores de adultos monogâmicos. Claramente adepto do que viria a ser o celibato exigido de sacerdotes católicos.
De certo modo, o que aparece no romance de Caldwell (inglesa/americana) dialoga complementarmente com o que é apresentado no estudo de Aslan (iraniano/americano), a imaginação contribuindo com a investigação, a arte (literária) convivendo amigavelmente com a ciência, para o esboço de uma figura humana de absoluto relevo: Paulo de Tarso, o apóstolo dos gentios, aquele que, sem ter sido um dos doze apóstolos, autoedifica-se no décimo terceiro deles, para fazer proselitismo entre os que não eram judeus, como ele, e como Jesus e seus apóstolos.
Tanto o Jesus histórico, metodicamente resgatado (tanto quanto possível) por Aslan (1972-), com as ferramentas da investigação científica, como o Paulo de Tarso, talentosamente biografado, literariamente, por Caldweel (1900-1985) são figuras e símbolos do que o homem contemporâneo é ou procura ser, agora afirmando a “morte de Deus”, enquanto, e por menos atenção que se dê a isso, tantos fundamentalismos e pentecostalismos estejam brotando mundo afora, à revelia e à sombra do inquestionável avanço do conhecimento científico e do domínio tecnológico típicos do século XXI da era cristã.
Se “Deus morreu”, é preciso saber qual. E perguntar se ele pode ou não ressuscitar. E se, podendo, quer. E se os homens querem, ou continuam preferindo Barrabás… Porque assim como não há vazio de poder, não existe vazio de fé. Ao homem não é dado abolir a política nem a crença de que não é um simples desdobramento material no universo indiferente a ele. Por isso, refletir e imaginar, como fizeram Aslan, Caldwell e seus leitores, é sempre interessante, além de prazeroso. Nem é preciso nada concluir com eles ou a partir deles. Basta deixar que a alma (ou a mente, simplesmente) passeie no jardim das ideias, da arte, da ciência, onde não brota aquele tédio que tantas vezes serve de adubo ao ódio, às guerras, a todo tipo de estupidez, enfim.
Valdemir Pires é economista e escritor.

Gostei muito do último parágrafo. Não é preciso concluir nada. Apenas deixar a mente livre e ir sedimentando conhecimentos, ideias , arte e ciencia, sem permitir que o tédio , adubo de ódio e guerra nos encha de estupidez.