Há o tempo do relógio, linear e impiedoso. Há o tempo das estações, circular e às vezes tedioso. Há o tempo da História, movimentado e ruidoso. Há o tempo artístico, indefinido e misterioso – e, dentro deste, está o tempo de Carlos ABC, imaginado, inventado com encanto, maravilhoso. Tempo que Maria Teresa Silva Martins de Carvalho soube tão bem capturar em O ABC de Carlos ABC (São Paulo, THEATRON – Marcos Thadeus Produções, 2021).
O tempo de Carlos ABC é flagrado em seu mais profundo modo já na capa desta admirável biografia (arte do próprio Carlos e de seu querido irmão Fran) – que é ao mesmo tempo autobiografia, graças à maneira como Maria Teresa soube, tão competente e sensivelmente, trazer esta história de vida à luz: o talentoso artista aparece nela manejando, com fios, bonecos que são, simultaneamente, personagens e ele mesmo, em diferentes fases de sua vida (vida e arte se confundem e se misturam e, nesse processo, contaminam o mundo com sua beleza).
O livro começa apresentando ABC em família, depois no carnaval e, enfim, no teatro, deixando que ele fale de si e se mostre (inclusive através de numerosas fotografias). O efeito primeiro é o leitor sentir-se à mesa do bar, ouvindo-o, de modo que não consegue interromper a conversa – quero dizer, a leitura. Em seguida, vai-se percebendo que o dramaturgo, ator, diretor, cenógrafo, figurinista é um “religioso carnavalesco” que puxa vigorosamente pelo imaginário a partir de seu lugar no mundo, revelando-o aos demais com gracioso talento: o caipira do interior paulista emerge, na imaginação e habilidade cênica de ABC, dotado de uma beleza que combina sagacidade, sonhos e esperanças, em meio à dureza da vida quotidiana. Carlos luta, claramente, pela sobrevivência de uma visão de mundo e de um modo de vida tipicamente provinciano, mas o faz dialogando com a arte universal com que também se envolve com igual talento e denodo, carregando para esta arte o que contém sua religiosidade sincrética, herdada da mãe, assim como sua postura inclusiva e respeitadora das diferenças, sorvidas na convivência com sua numerosa família.
Carlos ABC não vive, delira e, generosamente, permite a quem acessa sua arte delirar junto, encantando-se e tornando-se mais forte frente ao desvario que é viver totalmente à distância de qualquer loucura ou sonho impossível. Sua vida é um punhado de “causos” que, em outra parte do livro, ele conta deliciosamente como ninguém, em rápidas pinceladas.
A vida de ABC está amalgamada à vida artística de Piracicaba desde os anos 1970. Ele é um dos artífices do que se pode chamar, na cidade, de vida cultural. Chegou a ser diretor do teatro municipal e secretário de Cultura, logo retornando para seu lugar: o da arte propriamente dita, consciente da importância da política e da gestão cultural, mas decidido a não se deixar engolir por ela. Na sua história de vida, cruza com quase todos os nomes do cenário teatral e carnavalesco, interagindo com eles. Suas participações abarcam quase tudo de relevante que as últimas décadas acumularam no universo teatral da cidade, incluindo a famosa Paixão de Cristo.
Mas nada que possa ser dito do livro aqui comentado pode substituir sua leitura, indescritivelmente prazerosa e reveladora acerca da arte e de um artista que atua num lugar em que os fazeres artísticos são praticados com muito sacrifício, sem disso reclamar uma única vez. Assim como nada, nem o livro, acrescenta mais à percepção da dimensão elevadamente humana e bela de ABC, que com ele estar por alguns momentos, ouvindo-o lucidamente delirar em torno de pequenos ou de grandes temas: uma alma singular, posta no mundo para iluminar e aquecer diante de toda e qualquer escuridão ou frio. Dono de uma vida que merece este tributo: o registro em um livro que será uma pequena joia em qualquer biblioteca em que seja colocado. A minha biblioteca, particularmente, agradece esta oportunidade de conter um artefato de papel que permite navegar, por meio de palavras e imagens impressas, pelas águas claras e tépidas desse tempo maravilhosamente inventado por um ser humano que existe e sempre existirá numa dimensão em que espaço e tempo não contam, dimensão do onírico e do belo eternos.
Valdemir Pires é economista e escritor.
(Publicado anteriormente em PIRES, Valdemir. Tempo – Livro III (Piracicaba: Ed. do autor, 2022)