O tempo e o amor no limiar do salto

O tempo e o amor no limiar do salto

A paixão, na forma de amor à primeira vista, é como um salto no trapézio: se tudo dá certo, aplausos efusivos para o amor que vem a seguir, duradouro ou não; se algo, pequeno que seja, dá errado, gritos de horror, corpos que se esborracham no chão duro dos sonhos desbaratados. É tudo uma questão de tempo, do tempo de um sincronizado (ou não) com o tempo do outro: ambos precisam saltar no momento exato, o único tempo que permitirá se encontrarem no entrelaçamento aéreo que os manterá fora do alcance da lei da gravidade, assassina, se desafiada sem cuidado e sorte.

O conto “Salto triplo, em dois atos”, de Newman Simões, em “A morte canta no canto de um conto” (Piracicaba, Ed. do autor, 2004) tem como tema de reflexão o tempo, tema presente, aliás, em quase todos os demais contos da obra, espécie de obsessão do autor, atento observador das artimanhas da morte, essa interceptadora do eterno que os corpos debalde desejam e não se sabe se as almas alcançam.

Newman lança mão do tempo já de saída para a narrativa da funesta paixão entre José e Maria, pois o conto de desenrola em dois atos – o tempo do teatro, que condensa acontecimentos em uma porção definida de minutos, montando quadros que se encaixam para a compreensão da plateia. Os dois atos distam aproximadamente dois anos um do outro, o primeiro acontecendo em 1962 e o segundo ocorrendo no malfadado ano de 1964, revelando a preocupação do autor com a localização cronológica exata dos fatos narrados, com a notória intenção de datar claramente o desastre do circo no interior do trágico tempo histórico que foi o golpe militar no Brasil.

Dois outros artifícios da forma do conto puxam ao tempo: em ambos os atos, o que ocorre se situa em dias da semana explicitados (cronologia); e tudo acontece no tempo (psicológico) lento e seco de Piracá, uma “Cidadezinha qualquer”, como diria Drummond:

“Casas entre bananeiras

mulheres entre laranjeiras

pomar amor cantar.

Um homem vai devagar.

Um cachorro vai devagar.

Um burro vai devagar.

Devagar… as janelas olham.”

Águas paradas, até que, um dia, chega um circo, na Piracá de Maria e sua mãe, Lazinha, para chacoalhar os dias, noites e corações. O Circo Arlay traz com ele José. O belo e atlético trapezista, que desperta em Maria a paixão amorosa e, junto, o fascínio pelo espetáculo, capaz de alimentar-lhe os sonhos, de que seu mundo é carente. Essa paixão, claro, tem início com olhares que repentinamente se cruzam, ela na plateia, ele recém-terminado seu bem-sucedido salto – o tempo instantâneo da paixão. Seguem-se os encontros entre ambos e, como seria de se esperar, a dolorosa despedida quando o circo se vai – há tempo para tudo sob o céu de Piracá: tempo para encontro e tempo para desencontro.

O tempo leva Maria para os braços de Roberto, substituto imediato de José; ela encontrará também o teatro, que passou a ocupar o lugar do circo que não lhe foi permitido acompanhar.

Quando o circo retorna (sob o céu de Piracá há tempo também para o retorno, depois do tempo para a partida), aproximadamente dois anos depois, José quer ver Maria e, sobretudo, ser visto por ela na sua melhor forma. Mas no dia de sua performance, ela tem ensaio da peça que seu grupo está preparando. Apesar disso, ela vai à estreia do circo, equilibrando-se naquela meia hora que fica vaga entre a sessão circense e o ensaio teatral. O que acontece, então, é narrado brilhantemente por Newman, em curtos trechos que desnudam a intensidade da dor advinda da falta de sintonia quando ela acontece num salto triplo de trapézio e quando ela atinge dois corações que viveram em comum um sentimento intenso, marcado para sempre em suas almas.

O maior requinte do conto, no que diz respeito aos mistérios do tempo, porém, corre por conta de como o contista apresenta corpo e mente do trapezista no ato de enfrentar, primeiro, o desafio do salto e, segundo, o desafio de se equilibrar-se entre o pornográfico e o apenas erótico diante de uma mulher que percebe realmente amar; há, ainda, o esforço do artista circense para concatenar o homem e o artista que é, diante da visão que dele tem a amada, “fisgada” por essas duas dimensões dele, possivelmente carentes de encanto se separadas.

Se o tempo é um mistério e o amor também (assim como a paixão), talvez colocá-los juntos no mesmo palco, ou no mesmo picadeiro, para contemplá-los lúdica e atentamente, seja uma maneira interessante de encontrar rasgos comuns no véu que a ambos encobre. Talvez seja esta a suspeita norteadora da escrita contística e do jeito de falar da vida de Newman Ribeiro Simões.


Valdemir Pires é economista e escritor.

 

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