Nascemos e vivemos ouvindo dizerem que a diferença entre os seres humanos e os outros animais origina-se da capacidade de apreensão, compreensão e manejo do que há no mundo, a inteligência sendo exclusividade do homo sapiens, como o substantivo e o adjetivo em latim que dá dão nome à espécie humana quer dar a entender. Excluída essa espécie, todas as demais são consideradas irracionais, ou seja, desprovidas da possibilidade de pensamento e engenho.
Se forem consideradas as habilidades de cada espécie – do peixe, à ave, ao leão, à borboleta e à minhoca – será necessário admitir que a inteligência (ou um certo tipo de razão) não falta a nenhum animal sobre a Terra, no interior dela ou dentro da água ou pairando no ar – embora a amplitude e a profundidade do alcance dessa inteligência varie de uma espécie à outra, com vantagem incomensurável para os humanos, por motivos que a razão tenta explicar e que a religião remete à afirmativa de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus.
Assim, é acertado dizer, no máximo, que o homem é o ser mais inteligente do planeta, não o único dotado desse atributo. É aceitável apenas que existe entre o homem e os outros animais uma diferença quantitativa no tocante à inteligência.
Isso, porém, se por inteligência ou razão se tomar uma capacidade e um conjunto de habilidades para assegurar a sobrevivência individual; a reprodução (necessariamente em duplas) da espécie, para sua continuidade; e a convivência entre os indivíduos de forma organizada, evitando-se o desaparecimento por causa de ameaças do meio ambiente e de outras espécies ou riscos de combates interespécie capazes de dizimar a todos.
Ao ampliar a noção de inteligência para algo além do pragmatismo fundamental à mera sobrevivência e reprodução, nota-se que ela contém no humano dois elementos que são os verdadeiros componentes diferenciadores, qualitatativos, dessa espécie em relação a todas as demais: a faculdade de imaginar e criar (de transformar, portanto) e a obrigação de escolher. Criar e escolher – eis a essência da diferença entre o homo sapiens e todas as outras formas de vida que existiram (provavelmente), existem (certamente) e existirão (possivelmente) sobre a Terra e talvez (incrivelmente) nos seus arredores. Criar, como uma faculdade – cada indivíduo humano sendo dela dotado, em potencial, a experiência revelando que é possível ampliá-la em grupo e socialmente. E escolher, como uma obrigação, já que a vida humana não é viável sem escolhas, sem decisões, por mais isolado que alguém possa viver.
Os outros animais do planeta não criam. Cada indivíduo e grupo de indivíduos formado por eles nasce, vive e morre tal qual viveu, nasceu e morreu o indivíduo e o grupo da geração anterior. Enquanto o homem é, na essência, um ser que transforma, modifica, altera a si e ao mundo – faz, como se diz, História. Sobre isso não resta dúvida.
Os outros animais do planeta não escolhem. Nascem, vivem e morrem sob esquemas fixos, submetidos a leis imutáveis, surgindo como que especializados para as habilidades e convivências suficientes para existirem e subsistirem tal como desde o início. Os humanos, por seu turno, não só escolhem os modos e meios com que sobrevivem, como definem e redefinem a sua forma de viver – criam, como se diz: Cultura. Também sobre isso não resta dúvida.
Não deveria haver dúvida também de que o homem não faz apenas escolhas, digamos, técnicas, relacionadas à lida com os fazeres, mas também escolhas morais, estas totalmente inexistentes entre os animais ditos irracionais. Isso fica mais claro exemplificando-se. Um leão mata e ingere o que lhe convém de uma hiena, abandonando aos urubus o que não lhe interessou; o urubu consome os restos que o leão desprezou e um tanto do corpo da hiena permanece abandonado (os ossos), até que, descobrindo-o ao passar pelo local, um homem que faz clavas ou pentes de osso o recolhe. Nesse processo todo, do leão matando a hiena ao homem recolhendo os ossos, não foi feita nenhuma escolha moral, apenas escolhas, como ditas, técnicas: no ciclo da sobrevivência, cada ser envolvido na cadeia fez o que decidiu fazer a cada etapa, vida e morte convivendo entre si sem qualquer juízo de valor e, portanto, sem aspectos morais envolvidos. Porém se um homem mata um outro para ter a exclusividade de abater o bisão que não será suficiente para alimentar as tribos de ambos, houve nisso uma escolha técnica que carrega em si uma escolha moral. Ou seja, se um leão mata uma hiena para se alimentar, não ocorre um assassinato; enquanto que se um homem mata o outro para poder se alimentar, não há quem possa evitar que se diga, com razão, que aconteceu um assassinato (uma escolha moral inaceitável). Matar e morrer, entre animais irracionais não envolve criminalidade, como no caso do ser humano, que faz escolhas morais.
Entre homens e mulheres há um acordo, não só tácito, mas codificado em normas, de que certas atitudes e certos comportamentos não são aceitos, e quem desrespeita é punido pelos outros – eis porque Hegel vai dizer que o Direito é o cume das conquistas humanas.
Dentre as normas do Direito, as mais sensíveis são aquelas que dizem respeito à colaboração entre os indivíduos para a provisão da sobrevivência, abarcando as condições de produção e de distribuição da riqueza material (embora as pautas de costumes não raramente obscureçam este fato, distraindo os indivíduos dos verdadeiros interesses e dos jogos de poder que delas se beneficiam). Atingido o grau mais avançado da civilização e, portanto, da capacidade de viver sob Estado de Direito, a Humanidade, hoje, se depara com uma encruzilhada que, se não é a última, é eterna, reaparecendo à frente logo após ter sido (ilusoriamente) ultrapassada. Trata-se da encruzilhada em que se deve decidir pela rota em que a sobrevivência individual e coletiva deve ser provida exclusivamente pelas trocas (mercado ao sabor da “mão invisível”, ou seja, com o mínimo de coerção) ou pelo sistema de planejamento politicamente controlado (socialismo ou economia de comando). Nesta encruzilhada são bem visíveis aos olhos da mente (em teoria) as duas vertentes que tomam rumos distintos, com pontos de chegada claros. Mas aos olhos do corpo (na prática) aparecem três vertentes, havendo uma mista, nenhuma delas livre de obstáculos e de uma densa névoa que não permite ver além de uns poucos passos. E a que se trilha hoje, pavimentada desde o século XVI até o atual, é a mista, Estado e mercado convivendo entre si, com diferentes pesos de cada um, em cada tempo e lugar.
Trata-se de uma daquelas escolhas mais importantes feitas pelo homo sapiens até agora, nessa sua aventura de exclusivo protagonista das escolhas morais possíveis no planeta Terra. E é uma escolha moral e uma escolha técnica que anda com problemas, principalmente no tocante aos seus efeitos destrutivos sobre a natureza (com risco de extinção da vida) e também no que diz respeito às possibilidades futuras de manejar o poder (de administrar a política, ou seja, a compatibilização de interesses conflitivos), já que parece ter chegado a véspera do dia em que o Direito não será mais capaz de conduzir os homens à concórdia relativa entre si e a Diplomacia não será mais capaz de fazer o mesmo entre as nações, na tentativa de viver em relativa paz e com certo nível de prosperidade compartilhada.
Para evitar a escassez de bens e serviços necessários à vida e também o conflito autodestrutivo (no afã de fugir dessa escassez), problemas de que a humanidade vinha se afastando paulatinamente, desde o século XVI até agora, chegando no século XX a uma razoável (não plenamente aceitável) combinação entre capitalismo e democracia, as opções hoje existentes – chamemos estas de capitalismo com democracia (liberalismo) ou sem ela (mercado sob autoridade totalitária), de socialismo (ausência de mercado, com economia dirigida pelo Estado) e de social-democracia (mercado e Estado girando as engrenagens da economia em colaboração mútua, sob pacto político democrático) – parecem não mais serem suficientes, ao passo que tem sido impossível à espécie humana imaginar outras.
Diante deste quadro, é preciso entender que a opção dos grupos que se costuma situar à direita do espectro político convencional é a menos aceitável das escolhas morais para que a Humanidade possa seguir em frente sem abrir mão das conquistas civilizatórias, do Estado de Direito, da democracia e da economia focada na sustentação da vida digna (econômica, social e culturalmente falando) para a maioria dos indivíduos. A escolha da direita implica em abrir mão das maiores conquistas do homem na Terra: máximo de acesso possível aos meios de vida (combinando mecanismos de mercado e de Estado para produzir e distribuir a riqueza) com o grau de liberdade possível (definido ao sabor da luta política civilizada), obtidos através de pacto político que respeite os interesses da maioria e tenha por objetivo o máximo bem-comum. De fato, o que a direita (especialmente a extrema) tem a sugerir, como substitutos dessas conquistas históricas, é um vazio de ideias e uma escolha passional de métodos violentos, cujo resultado, sem qualquer margem de dúvida, é o retrocesso civilizatório, a volta a padrões de vida que igualam o homo sapiens, enquanto único detentor de escolhas morais, a viver nas cidades como na selva: matando e morrendo como se isso fosse natural (e não cultural, invenção, escolha) no homem, como é nos animais irracionais.
É necessário explicar como certos motes de alcance global (como empreendedorismo, inovação e liderança proporcionadora de ambientes de elevada produtividade – todos focados em eficácia competitiva e prometedores de prêmios na corrida da meritocracia) são crenças tendentes à direita e reforçadores de seu avanço na política, a partir de decisões e ações individuais tomadas sem a devida reflexão. Para poder afirmar, em seguida, que a escassez de conhecimentos filosóficos está nos levando a uma vida sem sentido, encantados que somos pelo canto de sereia de uma vida pessoal hipoteticamente feliz, à revelia do que ela cobra de todos os demais (e do próprio interessado, sem que perceba) e das fontes de onde se originam os bens e serviços que proporcionam o conforto que se confunde com a própria felicidade. Mas isso fica para a próxima.
Por ora, dois lamentos profundos: um, imediato: a triste eleição de Donald Trump nos Estados Unidos; outro, que vem se acumulando há décadas: a perda de qualidade da democracia, muito provavelmente em decorrência do aprofundamento da ignorância política entre os cidadãos comuns, que aparentemente tem por alicerce uma ignorância mais geral, forjada pelo quase abandono de práticas como a leitura reflexiva (em favor da técnica) e do debate de ideias acerca do sentido da vida e dos valores de que os homens devem ser portadores para justificar a qualificação de homo sapiens.
Valdemir Pires é economista e escritor.