O Processo Civilizatório

O Processo Civilizatório

Em momentos históricos de transição (como parece ser o atual), em que mudanças profundas e simultâneas acontecem, nublando a visão que tenta se lançar na direção do futuro, é de grande ajuda toda leitura que forneça elementos analíticos, pistas metodológicas, conceitos esclarecedores com potencial para reduzir ou atravessar a neblina que dificulta entender o que está por vir. Na estante das obras que podem oferecer este tipo de amparo figuram não apenas as recentes, mas também (e, em alguns casos, principalmente) algumas antigas. É o caso de O Processo Civilizatório, de Darcy Riberio, publicado originalmente em 1968, enquanto ele esteve exilado no Uruguai, perseguido pela ditadura militar instalada no Brasil em 1964, colhendo-o como colaborador direto do governo destituído.

Este pequeno, claro e objetivo livro de um dos principais intelectuais brasileiros apresenta um esquema do processo civilizatório (abarcando 10.000 anos, desde a Revolução Agrícola até o século XX) em que o subdesenvolvimento é conceituado não como um atraso socioeconômico e cultural dos países/nações que não atingiram o grau de desenvolvimento capitalista típico da Revolução Industrial originária, mas como uma contraparte deste. Diz Darcy Ribeiro que “O subdesenvolvimento não corresponde (…) a uma crise de crescimento, mas a um trauma em que submergem sociedades subordinadas a centros industriais, que se veem ativadas por intensivos processos de modernização reflexa e de degradação cultural” (p. 168). Como é o caso do Brasil, em que se aplica plenamente esta síntese:

(…) as nações subdesenvolvidas não são apenas atrasadas, são também as nações espoliadas da história, empobrecidas pelo saque que sofreram originalmente das suas riquezas entesouradas e, pela sucção secular dos produtos do trabalho de seus povos, através de sistemas inigualitários de intercâmbio. Soma-se a tudo isto a deformação de sua classe dirigente que, posta a serviço da espoliação estrangeira, não se torna capaz de amadurecer como um empresariado renovador e competitivo. Em lugar disto, configura um patronato deformado no exercício de funções gerenciais; uma oligarquia retrógrada apegada a privilégios, como o monopólio da terra; e um patriciado civil e militar parasitário, que absorve grande parte dos excedentes do trabalho comum. Nestas circunstâncias, seu atraso relativo não é um estágio de transição entre o arcaico e o moderno, mas uma condição estrutural impeditiva do progresso.” (p. 168-169)

Esta síntese perfeita de aspectos fundamentais – econômicos e políticos – da teoria do subdesenvolvimento não eurocêntrica recebe aportes empíricos exuberantes nos alentados volumes produzidos por grandes nomes da historiografia nacional sob o título de História da vida privada no Brasil. Ela arma o analista de condições promissoras para compreender as travas a um futuro  brilhante para países como o Brasil, no século XXI. E esta síntese não exprime apenas uma opinião, pois decorre da esquema analítico exposto no conjunto do livro aqui comentado.

Darcy Ribeiro procede a um levantamento das inovações tecnológicas que deram ensejo às grandes civilizações identificadas ao longo da História, a elas alinhando as mudanças decorrentes de sua adoção e difusão; mudanças que permitiram a existência de formações socioeconômicas e culturais específicas que, todavia, deram lugar a outras em seguida. Ele as caracteriza e dá nome a cada uma: teocrática de regadio, mercantis escravistas, despótico-salvacionistas, mercantis-salvacionistas, capitalista-mercantil, imperialista-industrial, socialista-revolucionária, socialista-evolutiva, dando de cada uma exemplos concretos, alertando sempre para o fato de que embora sejam evolutivas, não o são sempre cronologicamente.

Uma inovação notável de Darcy Ribeiro, nesta obra, é considerar o feudalismo não uma realidade histórica específica, correspondente ao momento entre queda do Império Romano e o fim da Idade Média, na Europa, mas sim um conceito que explica a regressão econômica-social-cultural em qualquer era histórica, com queda na capacidade produtiva, no volume de trocas, na elaboração intelectual, encolhendo o alcance das relações sociais que permitem sair da família para a tribo, desta para a cidade, desta para o Estado-nação.

As revoluções tecnológicas identificadas na obra são: Revolução Agrícola, Revolução Urbana, Revolução do Regadio, Revolução Metalúrgica, Revolução Pastoril, Revolução Mercantil, Revolução Industrial – esta sendo a única global, dado seu vigor produtivo e os elementos simbólicos que a justificam, fazendo-o em escala nunca antes vista, graças à própria “sub-revolução” que traz consigo em termos de transpores e comunicação de massas.  Vislumbra-se uma Revolução Termonuclear, em andamento desde meados do século XX. Enquanto as revoluções transcorridas trouxeram consigo suas respectivas formações socioculturais (a saber: aldeias agrícolas indiferenciadas, estados rurais artesanais, impérios teocráticos de regadio, impérios mercantis-escravistas, impérios despóticos salvacionistas, impérios mercantis salvacionistas, imperialismo industrial), a revolução em andamento nos século XX e XXI deverá resultar em algo entre ou na combinação de três possibilidades: socialismo revolucionário, socialismo evolutivo e nacionalismo modernizador. Qualquer que seja o caso, o resultado não “brotará” naturalmente de condições à parte das lutas por um mundo menos desigual. O otimismo marca (ou mancha? desde o olhar pessimista atual) o capítulo final de O processo civilizatório. A revolução termonuclear e as “sociedades futuras” é o nome do capítulo VIII, único a compor a parte 4, denominada A civilização da humanidade, um positivo ponto de chegada, extremo oposto do famoso “Fim da História” de triste e recente memória.

(…) o que está em marcha [desde o advento da bomba atômica e outras tecnologias de ponta] é uma etapa evolutiva nova, que transmudará, mais uma vez, a condição humana – agora de forma ainda mais radical, porque colocará, finalmente, a ação modelora de uma revolução tecnológica sob o controle de uma política intencional de base científica.” (p. 201)

(…)

A ruptura entre o produtor e o produto [já que a produção se dará a partir de pessoas que utilizarão ao mesmo tempo habilidades manuais e conhecimentos, não mais separados e atribuídos a agentes distintos] será (… ) superada, permitindo a cada pessoa exprimir-se no que faz. O desejo de beleza, que amanheceu tão cedo nas sociedades humanas (…) e foi tão cedo soterrado pela mecanização e pela especialização, voltará a florescer. (p. 203)

A mensagem é de esperança, para quem mira este futuro brilhante, mas vivendo um tempo que parece apontar na direção contrária: acontece que a passagem de uma formação social para outra, no processo civilizatório, costuma ser demorada, longa; e durante ela, misturam-se elementos que se definirão por completo somente no futuro, elementos já bem definidos no presente e elementos que tentam/tentarão retornar do passado – acontece um lusco-fusco do tipo gramsciniano. Depois deste claro-escuro renitente, é possível, ainda que não provável (dirão os descrentes), um mundo com tanto apreço pela beleza – quiçá pela justiça, também – como aquele vislumbrado por Darcy Ribeiro, um intelectual que amou profundamente a humanidade e viveu e morreu apaixonado pelo Brasil, desconsiderando o que contra ele fizeram os militares golpistas de 1964, chefes de então do “patriciado civil e militar parasitário, que absorve grande parte dos excedentes do trabalho comum.”


Valdemir Pires é escritor e economista.

 

 

 

 

 

(Referência: RIBEIRO, Darcy. O processo civilizatório. São Paulo: Ed. Vozes/Círculo do Livro, 1978, 270 p.)

 

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