Antes de abordar o delicado e infelizmente lastimoso tema sobre o qual me propus a escrever o presente artigo (a gentil convite do editor deste jornal, Alexandre Bragion), penso que caiba uma breve apresentação a respeito de quem sou àqueles que não me conhecem. Além disto, penso que tal introdução seja necessária para que o caro leitor compreenda que quem está lhe dirigindo as presentes palavras possui substância cultural e intelectual que as respalde.
Devo também desde já pedir a compreensão do leitor no que diz respeito ao seguinte problema: em um artigo como este, tenho a obrigação de ser sucinto. Entretanto este assunto é complexo por demais e escrever um texto curto sobre ele não é o ideal. Tentarei, de qualquer forma, oferecer ao leitor uma visão panorâmica sobre o assunto, convidando-o a adentrar-se a ele – se assim desejar – através de outras fontes confiáveis. Cabe também dizer que incluirei as minhas visões e vivências pessoais acerca da temática, pois creio que a pessoalidade aproxima o tema do indivíduo e o faz melhor compreendê-lo.
Sou músico de profissão: compositor de Música Erudita e musicólogo, nascido e crescido em São Paulo. Vivi em Piracicaba em alguns momentos da minha vida, inclusive minha esposa é da cidade. Aos 22 anos, em 2005, me mudei para a Alemanha – país onde alguns de meus avós, judeus, nasceram, antes de fugir ao Brasil por conta da perseguição nazista – para perseguir meus objetivos profissionais, tornando-me doutor em Musicologia e construindo uma carreira da qual só posso me orgulhar e agradecer às forças superiores por terem me concedido todo o êxito que venho tendo. Ao longo destes 13 anos vivi grande parte deles “em trânsito” entre Brasil e Alemanha, ou – para utilizar uma expressão alemã –, vivendo “como um pêndulo” entre os dois países. Hoje, aos 35 anos, encontro-me assentado e instalado na cidade de Hannover, onde trabalho como pesquisador do Centro Europeu de Música Judaica da Universidade de Música de Hannover.
Aqueles que conhecem minha obra artística sabem que a minha preocupação em utilizar a Arte como ferramenta para a construção de um mundo mais justo, correto e ético é algo inerente à minha pessoa. Todos os meus esforços criativos se dão em torno desta concepção a qual me propus desde o início de meu caminho adulto. Por isso minha atenção com relação a tudo o que ocorre no mundo é constante, assim como é meu estudo a respeito destes acontecimentos. Assim, de acordo com minha proposta enquanto artista e ser humano, aceitei escrever aqui sobre a situação social e política na Alemanha, acreditando que os seres humanos devem estar o mais conscientes possível sobre aquilo que acontece no planeta, para que possam, utilizando este conhecimento, fazer a sua parte tanto em nome de suas comunidades locais quanto do resto do mundo, dentro do possível.
No domingo passado ocorreram as eleições nacionais alemãs e algo muito feio, triste e perigoso consolidou-se no cenário político do país. Após 72 anos do término da Segunda Guerra Mundial, pela primeira vez um partido nazista (intitulado AfD, que traduz-se “Alternativa para a Alemanha”) voltou a figurar entre os mais fortes e poderosos da Alemanha. Com 12,6% dos votos, em um total de 61,95 milhões, tal partido obteve cerca de 7,8 milhões de votos, o que evidencia que o nazismo alemão nunca esteve morto, mas sim adormecido entre o povo, esperando pelo momento adequado para ascender novamente. Com este resultado, o partido em questão conquistou 94 cadeiras (de 709) no parlamento alemão, solidificando-se como a terceira maior força política do país.
O fato de o nazismo viver adormecido dentro da sociedade alemã não foi absolutamente uma surpresa para mim. Afinal, ao longo de todos estes anos eu vivenciei incontáveis situações e experiências que me deixaram claro que esta era a realidade. Vivendo como estrangeiro e judeu – ou seja, um alvo em dose dupla –, eu nunca fui pessoalmente atacado (até mesmo porque sempre soube me defender), mas fui diversas vezes tratado com um peculiar desrespeito que advém de certo senso de superioridade por parte de muitos indivíduos alemães, que em determinado momento de minha vida me convenceu por completo que a ideologia hitlerista ainda vive em muitos. Enfim, no último domingo minha teoria foi – muito infelizmente – comprovada.
Gostaria de explicar ao leitor o que fez com que o AfD ganhasse tanta força, de modo que nazistas que antes não expressavam-se agora orgulham-se em votar em seu partido. Diversos fatores levaram a esta realidade, mas há dois que entendo como principais. O primeiro é interno, o segundo é externo.
Comecemos pelo interno. Nos últimos dez anos a crise de migração europeia mostrou-se uma questão extremamente complexa e difícil de se lidar, graças aos incessantes conflitos civis em países da África e do Oriente Médio. Milhões de vítimas de ditaduras, guerras e movimentos terroristas requereram asilo aos países europeus mais ricos. Felizmente, diversos países ofereceram asilo a estes refugiados, salvando milhões de vidas. Dentre todos os países que o fizeram, a Alemanha colocou-se em primeiro lugar, chegando a receber somente em 2015 uma quantidade estimada de mais de um milhão de asilados (principalmente sírios e afegãos, graças ao inferno causado pelo Estado Islâmico).
A responsável por esta política foi a chanceler alemã Angela Merkel, que ocupa o cargo desde 2005 e no último domingo foi reeleita para um quarto mandato. O seu partido, o CDU (“União Democrata-Cristã”) é comumente descrito como sendo de centro ou centro-direita. Trata-se de um “partido político clássico”, com ideias e posições de modo geral equilibradas e coerentes com a realidade do mundo. O CDU bateu seu principal concorrente, o SPD (“Partido Social Democrata”), que se designa de centro-esquerda. Em verdade, ambos são muito semelhantes em termos políticos e uma coalizão é algo possível e cogitável.
Com relação aos refugiados,é preciso que o leitor compreenda que Merkel adotou esta postura por uma razão dupla que convém à Alemanha: primeiramente, a Alemanha é um dos países com maior percentual de população idosa do planeta. Mais de um quarto da população possui 60 anos de idade ou mais, totalizando cerca de 20 milhões de idosos no país. A aposentadoria é alta e os idosos vivem bem, como de fato deve ser. O problema é que não há mão de obra suficiente, não há adultos alemães o bastante para trabalharem e pagarem os impostos e as aposentadorias necessárias no país. Aceitando alguns milhões de refugiados jovens, Merkel possuía a ideia de trazer em um único investimento força de trabalho para seu país para esta e também a próxima geração (uma vez que grande parte dos refugiados chegaram com suas crianças). Assim, com esta política Merkel conseguiria não somente melhorar um dos maiores problemas sociais da Alemanha, como também se tornaria a líder da União Europeia que mais ajudou pessoas inocentes a terem suas vidas salvas (a segunda razão).
Pessoalmente, admiro a política de Merkel frente aos refugiados e acredito que ela fez o correto. Realizei junto à comunidade judaica de Berlim trabalho voluntário com famílias refugiadas e posso afirmar que é uma benção ver crianças que foram retiradas do coração da guerra, da beira da morte, para serem levadas a uma vida digna e saudável, que é o que lhes é de direito.
É preciso dizer também que, logicamente, o plano de Merkel não correu integralmente bem, como era de se esperar em se tratando de um fenômeno desta magnitude e complexidade, que é a migração de milhões de pessoas de culturas diferentes a um outro país. Houve erros de cálculo, estratégia e preparo por parte do governo. Houve também alguns crimes e outros delitos cometidos por refugiados e toda esta situação despertou a ira dos nazistas, que se sentiram ameaçados e enraivecidos pela presença dos novos concidadãos, ainda mais pelo fato de a grande maioria deles ser muçulmana. Assim, a islamofobia – uma das infelizes tendências de nossos tempos – acabou por tornar-se a ferramenta central da extrema direita na Alemanha.
O segundo fator que deve ser apontado, o externo, é a presidência de Donald Trump nos EUA. Quem acompanhou as eleições norte-americanas em 2016 – eu o fiz de perto e sofri com o desfecho – pode averiguar que a campanha de Trump fundamentou-se na incitação do ódio no povo americano, direcionado de maneira explícita a muçulmano e latinos, e, de uma maneira disfarçada e dissimulada, aos judeus e negros. Da mesma forma que os norte-americanos de extrema direita sentem-se agora “livres” para disseminar e expressar seu ódio ao próximo (como vimos em diversos episódios neste ano), o alemão também se sentiu. Lembremos que a presidência norte-americana é provavelmente a maior ferramenta de influência do planeta e, em outras palavras, “se os americanos podem, todos podem”.
Muito bem, unindo a “permissão para odiar” vinda do presidente mais poderoso do mundo à chegada de milhões de negros e/ou islâmicos na pátria alemã, estava pronto o cenário para a ascensão de um partido nazista.
A campanha do AfD, recém-formado em 2013, foi realizada com uma estratégia de marketing impecável para os seus objetivos (assim como foi a de Trump). Cada cartaz de propaganda foi cuidadosamente criado, com imagens e textos ora mais ora menos diretos, ora mais ora menos ofensivos, sempre jogando com ideias como “devolver a liberdade perdida”, “garantir que você não perca o que é seu de direito”, “impedir a destruição da tradição” (exatamente as premissas utilizadas por Hitler). Também para cada faixa de idade os propagandistas possuíam uma estratégia e uma maneira de veicular sua mensagem. Quanto aos ataques, alguns grupos eram deliberadamente agredidos, como os muçulmanos – afinal estes não têm como se defender à altura no momento. Outros grupos que também são alvo dos nazistas, como os judeus, logicamente, foram por vezes atacados de maneira oculta, “em off”, e vezes adulados nos momentos e ocasiões que convinha, afinal sabem que o lobby dos judeus é muito forte na Alemanha e atacar abertamente a comunidade judaica seria suicídio político.
Enfim, todas estas estratégias, unidas ao momento e às circunstâncias, acabaram por garantir o voto dos maus, e também angariar muitos votos de pessoas ignorantes que são facilmente influenciadas e levadas por ondas populistas.
Como já expliquei acima, o resto é história. Hoje vivemos em um país onde o neo-nazismo é de fato uma realidade. É uma minoria? Sim, mas ainda assim estamos falando de quase oito milhões de pessoas. E ninguém pode saber o que o futuro trará. Pode ser que a situação melhore e o partido diminua. Ou pode ocorrer o contrário, e em quatro anos ele estar ainda maior; e em oito dominar o país.
Quanto ao dia a dia, houve também algumas alterações evidentes. Há dois ocorridos que acredito que seja válido dividir com o caro leitor, afinal acontecimentos corriqueiros dizem muito sobre a realidade social de um país. Quando morávamos em Berlim, há alguns meses, minha esposa estava no metrô. Dois jovens adultos alemães sentados a alguns metros dela conversavam. Chegando a uma das estações, um deles levantou-se e ao despedir-se de seu companheiro, ergueu o braço direito e gritou “Heil” (o cumprimento que se fazia na época de Hitler), para logo após deixar o trem. Foi em plena luz do dia. Em meio à movimentação do metrô quase ninguém percebeu ou, quem percebeu, não pronunciou-se. O outro episódio ocorreu justamente no domingo passado, no dia da eleição. Eu estava na cidade de Düsseldorf, a trabalho. No domingo à noite, antes de retornar a Hannover, me encontrava juntamente com um colega caminhando à margem do rio Reno. Passamos por três homens que bebiam e comemoravam a conquista do terceiro lugar pelo partido nazista. Levantavam os copos e brindavam gritando em alemão “ao Führer” (como Hitler era chamado).
Devo encerrar o texto por aqui, mas não sem antes conceder um alarme ao Brasil. A extrema direita, o fascismo, o nazismo, estão em uma onda de crescimento perigosíssima no mundo, como não se via há muitas décadas. No Brasil não é diferente. Um fascista como o deputado e possível candidato à presidência Bolsonaro deve ser parado antes que ganhe qualquer tipo de poder, pois, se isto ocorrer, catástrofes ocorrerão para todos os que não forem homens brancos, cristãos heterossexuais e apoiadores dele. Os meus avós vieram fugidos da intolerância religiosa e chegaram no Brasil no século XX. Foram recebidos de braços abertos e aprenderam rapidamente a amar o país, sentimento que levaram até o fim de suas vidas. O Brasil de hoje possui imensos problemas e de fato não sei se é possível resolvê-los, afinal o cidadão trabalhador, honesto e de bem está muito ferido e enfraquecido. Mas, mesmo assim, sobre algo tenho completa certeza e convicção: eleger um nazista que promete ter as soluções seria o maior erro da história do país. Infelizmente, o Brasil possui dezenas de milhões de ignorantes e o terreno é favorável para tal catástrofe.
Termino com uma saudação ao leitor e buscando manter e dividir com ele a Fé de que as sociedades hão de reagir contra os opressores que procuram desconstruir a Liberdade, a Tolerância e o Respeito ao Próximo. Espero ter acrescentado ao conhecimento do leitor.
Um abraço a Piracicaba, de Hannover, Dr. Jean Goldenbaum
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(FOTOS: Paola Goldenbaum)
Fontes úteis sobre o tema:
https://bundestagswahl-2017.com/
http://www.unhcr.org/pages/4a02afce6.html
https://www.bmfsfj.de/blob/113952/83dbe067b083c7e8475309a88da89721/aeltere-menschen-in-deutschland-und-in-der-eu-englisch-data.pdf
Simplesmente magnifico e esclarecedor o texto, uma pena que seja a realidade triste de ignorantes, que para conseguir poder precisa diminuir e acabar com os outros pela falta de capacidade natural, pela falta de dignidade, e outras faltas mais. Que este texto chegue a muitos para abrir suas mentes e não permitir que o holocausto aconteça aqui também.
Uma visão clara e oportuna do perigo que ronda não só a Alemanha, mas também outros países, Brasil inclusive. Democratas de todo mundo, univos.