Michel Houellebecq é um grande nome da literatura francesa contemporânea. Polêmico, como não pode deixar de ser qualquer um que decida escrever reflexivamente sobre temas complexos da contemporaneidade, como solidão, tédio, consumismo, envelhecimento, eutanásia etc. Mas, ao mesmo tempo, absolutamente literário, artístico. E senhor de uma literatura que, apesar de profunda, não perde em leveza, mantendo-se envolvente e agradável.
O mapa e o território (São Paulo: Record, 2012, 399 p., trad. de André Telles) é um de seus melhores romances, Prêmio Goncourt (o mais importante da França) de 2010. Os personagens principais são dois artistas: o fotógrafo e pintor Jed Martin e o escritor Michel Houellebecq. Sim, ele próprio: o autor transformado em personagem! Ambossolitários, na Paris efervescente do início do século XXI, terminam encontrando-se por razões profissionais, ensejando,a partir da terceira parte do livro (p. 255), a transformação do romance de tema urbano-global em novela policial muito bem conduzida.
Jed é o típico artista plástico bem-sucedido no mercado global da fotografia e da pintura. Suas obras atingem valores estratosféricos, tornando-o suficientemente rico para levar uma vida confortável e dar-se ao luxo de extravagâncias inacessíveis ao indivíduo mediano. Mas isso não faz dele alguém propriamente feliz. Seu sucesso não se deve somente à qualidade de sua arte, mas também a uma série de circunstâncias fora de seu controle – circunstâncias absolutamente mercantis. Ele é muito criativo, mas não fosse a associação de suas fotos aos mapas Michelin e ao fortuito encontro com uma executiva da empresa (Olga, uma russa), não se pode imaginar em que teriam dado seus artefatos.
A partir de determinada fase de sua produção artística, Jedse entedia com a fotografia, surpreendentemente abandonando um nicho de mercado em que se tornara uma estrela (o artista não se deixando engolir pela fama), migrando para a pintura, vindo a retratar pessoas (anônimas ou famosas) representativas de profissões em declínio ou emergentes; entre seus quadros, destacam-se Bill Gates e Steve Jobs discutem o futuro da informática e, fundamental para a trama do romance, Michel Houellebecq, escritor (o autor, que já havia se tornado personagem, agora passa a ser, também, obra pictórica de uma personagem… Que exercício!). Desvia-se também deste sucesso artístico-comercial, passando a dedicar-se, na fase final da vida, à mescla de fotogramas retratando a natureza em contraste com artefatos industriais que o fascinaram a vida toda.
O que acontece com Houellebecq no romance de Houllebecq? Esta é a pergunta que persegue o leitor o tempo todo, claro. E ela é respondida de uma maneira absolutamente surpreendente, ao gosto dos apreciadores de tramas policiais, sem perder, todavia, a nuance psicológica.
Há uma personagem não humana que atravessa o livro: um boiler. Ele aparece no início do romance, apresentando defeitos que demoram para ser solucionados, reincidindo tempos depois; a máquina reaparece no fim do livro, quase como interlocutora de um Jed Martin velho e solitário:
– Estava tão à toa que, nas últimas semanas, dera para falar com o boiler. E o mais preocupante – tomara consciência na antevéspera – era que agora esperava uma resposta do boiler. Diga-se a seu favor que o aparelho produzia ruídos cada vez mais variados: gemidos, ronco, estalidos, silvos de tonalidade e volume variados; quase dava para acreditar que num futuro próximo viesse a alcançar a linguagem articulada. Era, em suma, seu mais antigo companheiro.
Fico por aqui, no intuito de fisgar potenciais leitores para esta obra que reputo magnífica, mas há muito mais em suas páginas ao mesmo tempo filosóficas e hilariantes. Há muito mais que isso, também, na obra toda de Houellebecq. A propósito, eu o conheci em Submissão, sugerido entusiasticamente pela amiga Soraya Gasparetto, a quem agradeço esta e outras dicas literárias enquanto lidávamos, na UNESP, com ensino e pesquisa na área de Administração Pública.
Dia desses, recomendei O mapa e o território àRegina, esposa e leitora contumaz, como eu– à guisa de aprofundamento de um tema (xenofobia) sobre o qual conversávamos no café da manhã. Disse-lhe que o livro tinha como personagem principal um professor universitário que vivencia a ascensão e predomínio do islã na França, remoendo a perda de liberdade decorrente, no ambiente de trabalho e na vida social, mas adaptando-se às circunstâncias como um arrivista típico da globalização neoliberal.Pouco depois, veio a vontade de reler o que havia recomendado e, ato contínuo, a detecção do engano: O mapa e o territórioconta outra história… Fiquei então me perguntando: o enredo que mencionei à Regina é de outro livro de Houellebecq ou é obra de outro autor? Incomodado e querendo corrigir o erro, busquei a lista da produção literária do francês polêmico (acusado inclusive de plagiar a Wikipédia) e encontrei o seguinte:
Seu mais novo romance foi ´Submissão´. França, 2022. Depois de um segundo turno acirrado, as eleições presidenciais são vencidas por Mohammed Ben Abbes, o candidato da chamada Fraternidade Muçulmana. Carismático e conciliador, Ben Abbes agrupa uma frente democrática ampla. Mas as mudanças sociais, no início imperceptíveis, aos poucos se tornam dramáticas. François é um acadêmico solitário e desencantado, que espera da vida apenas um pouco de uniformidade. Tomado de surpresa pelo regime islâmico, ele se vê obrigado a lidar com essa nova realidade, cujas consequências – ao contrário do que ele poderia esperar – não serão necessariamente desastrosas.
Informei Regina acerca do título correto. Mas… Ora! Não é possível!A Wikipédia está errada. Eu não li Submissão em 2022, 2023 ou 2024. Eu o li enquanto estava na UNESP, de onde me retirei em 2018. Este livro foi publicado muito antes de 2022, com certeza. De fato! Consultando minha lista de leituras, ficou esclarecido: terminei de ler Submissão no dia 03/10/2015, exemplar emprestado pela professora Soraya.
Outro e penúltimo comentário: minha releitura de O mapa e o territórioterminou em 02/10/2024 (como base para esta resenha, escrita em 03/10/2024): quase exatos 9 anos atrás, quando eu estava lendo Submissão! Esta é uma coincidência (nem feliz nem infeliz) que eu chamaria de houellebecquiana.
Por fim, o registro de uma passagem de O mapa e o território que pode vir a ser útil a muita gente:
Mais genericamente, [Jed] parecia aceitar muito mal seu novo status de riqueza, como costuma acontecer com pessoas oriundas de um ambiente pobre: a fortuna só faz a felicidade dos que sempre conheceram certa abastança, desde a infância preparados para aquilo; quando se abate sobre alguém que conheceu um início difícil, a primeira sensação que o invade, que ele às vezes consegue temporariamente combater, antes que no fim volte a dominá-lo por inteiro, é basicamente o medo.
Valdemir Pires é economista e escritor.
Houellebecq não só se insere como personagem no seu romance O Mapa e o Território como exibe um lado desconcertante em sua vida pública: o dom premonitório. Li O Mapa e o Território em 2021 quando o Brasil registrava 300.000 mortes na pandemia e a obra me jogou num torvelinho de angústias. Esse medo constante bem poderia estar relacionado ao requinte com que o personagem Houellebecq foi morto e milimetricamente esquartejado tal qual uma obra de arte desconstrutivista e… aí é que está o grande chiste; também poderia estar relacionado ao Houellebecq da vida real que foi capa da Charlie Hebdo no lançamento de “Submissão”, no mesmo dia em que o jornal sofreu o atentado terrorista. Premonitório ou prestidigitador, seus romances me pegaram de jeito.
Achei a resenha fantástica!