Onde estava o juiz que ele nunca tinha visto? Onde estava o tribunal ao qual ele nunca havia chegado? Mas na garganta de K. colocavam-se as mãos de um dos senhores, enquanto o outro cravava a faca profundamente no seu coração e a virava duas vezes. Com os olhos que se apagavam, K. ainda viu os senhores perto de seu rosto, apoiados um no outro, as faces coladas, observando o momento da decisão.
– Como um cão – disse K.
Era como se a vergonha devesse sobreviver a ele.
(Franz Kafka, O Processo)
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O homem é uma paixão inútil. Sempre procurei oposição a este pensamento de Sartre. Todavia, há situações, momentos em que toda irrelevância humana torna-se evidente, manifesta. O sentido das atividades, das ações, do desejo esfacela-se, esvazia-se. Toda energia, empenho, dedicação em benefício do trabalho, dos projetos, da labuta paulatina, desmerecem, perdem corpo, brilho, sentido. Qual a relevância do humano, de seus apontamentos, de seus sonhos, devaneios, elucubrações, vontades diante das fatalidades, das urgências, das determinações, de um novo ordenamento, de uma nova engenharia organizacional, das orientações das empresas, instituições? Para além do humano, de suas representações, suas glórias, suas necessidades prementes, anseios, perspectivas espirituais deve se situar a instituição e sua saúde financeira, sua reengenharia de gestão. É preciso descartar a força de trabalho, redimensionar as exigências da empresa, repor as perdas, realocar recursos materiais, esquecer-se de que instituições é, tão somente, a expressão do espírito humano, de sua consciência. Anula-se, perde-se o humano, sua alma; insurgem engrenagens, peças, burocracias, recomposição, estruturas, reconfiguração da dinâmica financeira, dos números, das contas.
As diretrizes econômicas do neoliberalismo, redundando numa perversa lógica de mercado, numa ideologia de competitividade, liderança, lucratividade, burocracia, sucesso, reforçam e enfatizam a perspectiva da descartabilidade humana. Retoma-se, alinha-se o processo mais violento, mordaz, irrefreável de alienação, reificação, caracterizando, definindo a redução do humano à mera condição de coisa. A vileza do mercado ensina as instituições, em nome de uma pseudo sustentabilidade de gestão, a jogarem, lançarem o indivíduo ao ostracismo, ao banimento, à anulação, ofertando-lhe o desespero, o espírito desgarrado, o abandono primeiro. Translocadamente, os gestores lavam suas mãos – em uma reprodução do gesto vil de Pilatos –, eximem-se de todas as responsabilidades, como se estivessem incólumes da perfídia social, das consequências existenciais de decisões técnicas, frias, burocráticas.
Privado, exilado do lugar de reconhecimento e atuação profissional, espaço de produção da vida objetiva – fonte de manutenção e supressão de necessidades biológicas – e, concomitantemente, das representações existenciais subjetivas, espirituais, conquistadas a partir da vivência e exercício de potencialidades criativas, humanizadoras, o humano passa a estar circunscrito à experiência da nulidade, impotência, fragmentação. Humanizar-se, nestas circunstâncias, não mais lhe é apropriado, possível, cabível, de direito.
O humano é um ser social, gregário. Para o pensamento aristotélico, a dimensão política deve construir, edificar um tecido social que possibilite o pleno desenvolvimento, a felicidade do humano. A tradição cristã buscou contemplar tal condição mediante a vida em comunidade, pautada no amor e no serviço. É na estabilidade da vida em comunidade, na segurança da partilha de ideais e projetos que o cristão se entrega, na plena confiança de que está realizando um projeto divino. A perspectiva da estabilidade descortina-se como um direito fundamental. A vida em grupo pressupõe confiança, compartilhamento de projetos e anseios, estabilidade, segurança social. Os princípios neoliberais destroem, corrompem a vida gregária, a fidelidade de um caminhar coletivo.
Final de ano, interessantemente, é o tempo primeiro para que as instituições reformulem seus quadros, suas exigências, seus compartimentos, sua lógica de produção. Tomado pelo imediatismo, pragmatismo e superficialidade, sempre concernentes à prática do mercado e da ideologia neoliberal, o humano perde a perspectiva da comunhão, do sentido último do existir, da transcendência. Os homens, relegados, separados do corpo de produção, fatalmente, estarão entregues, lançados a toda má sorte. Contraditória coincidência: este é o mesmo período do Natal, momento da celebração, de genuína esperança, dos grandiosos e peculiares sentimentos de amor. O homem está dividido, cindido: comprime-se no limite da instituição e de seu ser; de sua alma e de sua perdição; do abandono e da fé; do desespero e do acalanto; da desconfiança e da crença.
O humano retomando toda sua energia, sua inclinação criativa, sua liberdade, grita, sem medo, ousamente: sou único, minha realização, minha humanidade é o fim; a instituição é um meio, reprodução de minhas necessidades, de minha vontade, de minhas intenções, de encontro marcado com o outro, com o meu semelhante, com a minha comunidade, com a sociedade.
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Adelino Francisco de Oliveira é filósofo, teólogo e mestre em Ciências da Religião.
Adelino,
Estou aqui não apenas para parabenizá-lo por mais um texto belíssimo e de profundo conhecimento seu, mas também para expressar toda minha gratidão por ter tido o senhor como meu professor.
Muito obrigado por compartilhar, ao menos um pouco, do seu conhecimento comigo. Aprendi muito com o senhor. Não no simples sentido acadêmico que a escola proporciona, mas no sentido vívido que suas palavras se manifestavam em minha mente.
Acredito que o verdadeiro propósito de frequentarmos uma instituição de ensino não é simplesmente pelo conhecimento adquirido dos livros, pois esses nós podemos estudar em casa, mas o conhecimento adquirido das palavras de professores como o senhor, que nos entende e sabe explicar da melhor forma possível para aplicarmos o conhecimento em nossa vida.
Creio que posso estar dizendo isso em nome de todos os seus alunos.
Muito obrigado por tudo o que o senhor fez pela gente. Será lembrado pelo resto de nossas vidas como um grande professor, mentor e amigo.
Um grande abraço.
Estimado Reckia,
Agradeço muito por sua sensível mensagem. Sei o quanto você é generoso…
Penso que a contribuição poderia ter sido mais densa, intensa… Espero que você caminhe bem, com perseverança e esperança. Não deixe de dar um forte abraço em todos os demais queridos e já saudosos alunos.
Esteja bem!
Brilhante reflexão sobre a condição do ser humano à mercê do neoliberalismo e de sua “perversa lógica de mercado”, reduzindo-nos à condição de coisa, à perda da alma. Pouco conheço desse assunto. Leituras em jornais, depoimentos de especialistas, noticiário de TV, me forneceram algumas pincelads do que acontece no mundo e nas suas crises, e as consequências para a vida humana. Diferente do professor Adelino que, com profundo conhecimento, nos faz um relato cruel que assusta, mas também comove. Acreditando no nosso livre arbítrio nos lembra da possibilidade de nos reenergizar e , sem medo, reivindicar e retomar nossa condição única, “o encontro marcado com o outro”, nossa condição de ser social. Minha leitura: a redenção pela espiritualidade.
Prezada Zilma,
Sentimos este tema na carne, ao nos depararmos com tantos discursos e práticas em torno de conceitos vagos, confusos, dissimuladores que apenas procuram esconder, velar uma perversa lógica de mercado.
Concordo que a dimensão da espiritualidade, em um sentido forte e complexo, é uma via fundamental.
Obrigado pela interlocução e pela constante manifestação de apreço.
Esteja bem! Com os melhores cumprimentos e votos de um Natal tomado pela esperança e um novo ano cheio de possibilidades.
O neoliberalismo é o culpado de tudo, sempre né?
As instituições reformulam seus quadros e isso é saudável, na medida em que os que saem ganham um impulso de mudança e como diria cecilia meirelles “A vida só é possível reinventada”.
Caro Sr. José Silveira,
Não sei se o neoliberalismo é o “culpado de tudo”… Penso que a economia é uma construção cultural, é preciso pensar outra maneira de construção econômica, uma na qual o dinheiro não tenha a precedência em detrimento do humano. Como nos ensinou Kant (e antes dele a tradição cristã): a humanidade é sempre o fim, nunca o meio.
Esteja bem!
Falou tudo Adel, seus pensamentos vão ser muito uteis na minha vida profissional.
Um cordial abraço, seu ex-aluno Vinão.
Caro Vinícius Tonon,
Agradeço por seu comentário. Espero, de fato, que em sua atuação profissional as dimensões da ética e da política estejam sempre presentes. Força e sucesso!
Esteja bem!
Ótimo texto Adelino;sempre tecendo argumentos bons,sólidos sobre o presente;podemos encontrar os exemplos iguais os de cima todo dia,em forte domínio nessa época de natal,onde muitas vezes não há limites no consumismo….
Sentirei muita falta das aulas FORTES,DENSAS no colégio.Pode ter certeza de que elas foram muito benéficas,ajudando a desenvolver reflexões baseadas nos pensamentos filosóficos e também para formação humana.Desejo um feliz natal e um ótimo ano novo.
Estimado Rafael Simoni,
Sentirei falta de suas perguntas e observações provocativas. Você tem um belo caminho a percorrer, força e perseverança. É preciso olharmos a vida como um estóico, sem nos entregarmos, sem nos abatermos…
Que a experiência do Natal renove suas esperanças e que o Novo Ano seja pleno de possibilidades.
Esteja bem!
caro Adelino,
Faço das palavras do Lucas Reckia as minhas.
Como sabe, discordo alguns pontos do seu texto – e professor Falconi também. Apesar disso está brilhantemente bem escrito.
Um santo natal, obrigado por sua convivência e grande abraço
Estimado Guilherme Ávila,
Há tanto ainda o que discutirmos… tantos debates por fazer… tanto conhecimento por construir e articular… Sinto profundamente não poder mais construir este caminho com vocês…
Há uma lógica perversa, desagregadora, niilista que cerceia, esvazia, frustra, priva tantas possibilidades… Para além de qualquer compreensão teórica, hoje sinto na carne a frieza e crueldade de decisões burocráticas, não sensíveis a condição do humano. Para além da razão prática, nos ensina Ortega y Gaset, há a razão vital, que não pode ser desconsiderada… Sou eu e minhas circunstâncias… A vida que é sempre singular, única… As empresas, ao descartarem seus quadros, perdem também a alma… tornam-se outra coisa, já não são mais elas mesmas, pois não há uma existência independente das pessoas que as constituem.
Obrigado por sua sensibilidade.
Esteja bem!
Mestre Adelino,
Gostaria primeiramente de parabenizar pelo belissimo texto, e agradescer por todas as aulas de filosofia, pois foram umas das aulas que mais me ajudaram no vestibular pois conseghi adequar os temas de redaçoes a alguns filosofos citados em aula, uma delas foi a unicamp que citei rousseau, e felizmente conseguir ingressar para a segunda fase, tive a felicidade de aprender cpm o melhor por todo meu colegial, sentirei falta de você e de suas brilhantes aulas, espero que consigamos ser a cada dia melhores em tudo, lhe desejo um òtimo natal para todos aí em sua casa, e que um dia nos encontremos, mesmo que a velhisse lhe atinja como uma naturalidade humana ( provavelmente eu não serei velho) hahaha, desejo—lhe tudo de bom e de melhor
Estimado Belluco,
Obrigado pelas belas e ternas palavras. Obrigado pela pessoa boa, humana que você é. Mas ainda preciso vê-lo em uma apresentação, tocando, externalizando suas potencialidades musicais, artísticas. A dedicação, disciplina e perseverança vão levá-lo muito longe… Força e sucesso!
Esteja bem!
Mestre Adelino,
Gostaria primeiramente de parabenizar pelo belissimo texto, e agradescer por todas as aulas de filosofia, pois foram umas das aulas que mais me ajudaram no vestibular pois conseghi adequar os temas de redaçoes a alguns filosofos citados em aula, uma delas foi a unicamp que citei rousseau, e felizmente conseguir ingressar para a segunda fase, tive a felicidade de aprender cpm o melhor por todo meu colegial, sentirei falta de você e de suas brilhantes aulas, espero que consigamos ser a cada dia melhores em tudo, lhe desejo um òtimo natal para todos aí em sua casa, e que um dia nos encontremos, mesmo que a velhisse lhe atinja como uma naturalidade humana ( provavelmente eu não serei velho) hahaha, desejo—lhe tudo de bom e de melhor.
Abraço,
Bruno Belluco
Olá Adelino!
Lindo texto, devemos aproveitar o Natal e outras oportunidades que surgem (como também criá-las) para buscar o Religare que pode redimir nossa condição humana.
Abraço! Feliz Natal para toda a família!
Raul Rozados
Estimado Raul,
Agradeço pela interlocução. De fato, que a experiência do Natal seja oportunidade de renovarmos toda esperança e que o Novo Ano traga muitas possibilidades… Compartilho com você a perspectiva de que na dimensão da religião pode repousar o caminho da redenção do humano. Mas é preciso antes compormos uma outra concepção de religião, mais densa e integradora…
Esteja bem!
Adelino,
Obrigado e parabéns por tudo que você tem contribuido
para a minha formação! Que você continue passando para
todos seus grandes ensinamentos mestre!!
Grande Abraço
Estimado Breno,
Agradeço pela manifestação de estima e afeto. Espero ter contribuído um pouco para o aflorar, o despertar de suas potencialidades… Foi, de fato, um privilégio, uma grade satisfação poder acompanhá-lo no decurso de sua formação inicial. Um abraço carinhoso em seus magníficos avós, Malu e Gil.
Esteja bem!
Um belo texto Mestre, que nos leva a pensar os rumos que o mundo vem tomando graças ao neoliberalismo, e quais as consequencias disso em nós. Vemos que nem mesmo as religiões estão salvas do poder do dinheiro, tendo como exemplo tanto religioes criadas como mera empresas, para que o “dono” obtenha lucro, e tambem aquelas criadas com propósitos espirituais, mas que tambem estão visando o lucro, o dinheiro, e deixando de lado seus verdadeiros princípios. É uma pena isso.
Aproveito tambem para agradecer as aulas de Filosofia, foram necessárias tanto para os vestibulares quanto para minha formação humana. Vejo o mundo com outros olhos, com muito mais criticidade.
Um grande abraço, que seu Natal seja muito iluminado, e que em 2013 voce tenha grandes e boas surpresas! Voce é merecedor!
Rafael Polizel
Estimado Polizel,
Como é bom receber suas palavras, carregadas de criticidade e afeto. Mas veja os desvios das instituições apenas evidenciam os nossos limites humanos. Há no cristianismo uma visão de homem e de mundo muito elevada, somos nós – e nossas instituições – que não conseguimos alcançar e realizar a beleza e profundidade dos princípios cristãos. Nos encontramos muito aquém do ideal cristão.
Espero, de fato, ter contribuído com sua formação. Que você transforme em ato todas as suas potencialidades.
Esteja bem!
Adelino,
parabéns pelo ótimo texto, como sempre levantando questões pertinentes…
É desesperador ver a forma como as instituições utilizam de discursos moralistas superficiais e falhos, para no final sempre seguir a lógica e as regras do neoliberalismo, tal comportamento nós faz perder a fé no futuro que aguarda as dimensões mais espirituais e morais da humanidade.
Entretanto não podemos perder as esperanças, apenas o fato de ter tido você como professor já aumenta muito minhas esperanças, pois me faz acreditar que existem ainda pessoas assim como você, que não colocam o lucro e o poder em primeira instância, pessoas que visam construir dentro da educação muito mais do que está nos livros, algo que vai além disso, professores que buscam desenvolver em cada aluno valores morais e uma visão de mundo que os elevam dentro da sociedade.
Adelino quero agradecer a cada aula que você nos proporcionou, com você aprendi muito e entre esses aprendizados o de nunca perder a esperança na humanidade e sempre buscar fazer algo para melhora-la.
Acredito que assim como você sempre foi persistente conosco, nunca desistindo de nós e sempre vindo com uma didática diferente para tentar nos cativar e mostrar os diversos ensinamentos da filosofia. Assim devemos ser com os homens e com o mundo que nos cerca, nunca devemos desistir dele, sempre devemos tentar muda-lo.
Obrigado Adelino por tudo, você contribuiu muito para a minha formação profissional e humana, desejo que consiga passar ainda para muitos jovens esses conhecimentos…
Boas Festas
Grande Abraço da sua aluna
Querida Georgia,
Que reflexão maravilhosa… Obrigado por cada palavra… como é bom e importante ver a contundência de seu texto, a dimensão ética que percorre toda sua reflexão. Na verdade são pessoas como você que nos ajuda a renovarmos a fé na humanidade, apesar da dureza das instituições. Suplantando a razão do mercado, matemática devemos nos pautar na razão vital, que considera o humano e suas circunstância. Obrigado pela amizade sincera e pela presença cheia de criticidade e esperança. Força!
Esteja bem!
Estimado Breno,
Agradeço pela manifestação de estima e afeto. Espero ter contribuído um pouco para o aflorar, o despertar de suas potencialidades… Foi, de fato, um privilégio, uma grade satisfação poder acompanhá-lo no decurso de sua formação inicial. Um abraço carinhoso em seus magníficos avós, Malu e Gil.
Esteja bem!