Falta no estado de natureza um juiz conhecido e imparcial, com autoridade para dirimir todas as diferenças segundo a lei estabelecida. Como todos naquele estado são ao mesmo tempo juízes e executores da lei da natureza, e os homens são parciais no julgamento de causa própria, a paixão e a vingança se arriscam a conduzi-los a muitos excessos e violência, assim como a negligência e a indiferença podem também diminuir seu zelo nos casos de outros homens.
Cada vez que os legisladores tentam tomar ou destruir a propriedade do povo, ou reduzi-lo à escravidão sob um poder arbitrário, estão se colocando em um estado de guerra contra o povo, que fica, portanto, dispensado de qualquer obediência.
– John Locke. Segundo Tratado sobre o Governo Civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil.
As recentes publicações do jornalista Glenn Greenwald, do TheIntecept Brasil, acerca de conversas travadas entre o juiz e a promotoria podem ser reveladoras quanto à fraude que caracterizou o processo de julgamento do ex-presidente Lula. As articulações entre o juiz com o promotor evidenciam um processo fraudulento, no qual o juiz, destituído do critério da imparcialidade e da justiça, acabou por definir, previamente, sua sentença condenatória – independentemente de qualquer ônus de prova. Os argumentos de defesa, protagonizados por Lula e seus advogados, foram tacitamente desconsiderados, diante de um tribunal enviesado,com perspectivas supostamente políticas, violando o princípio do direito e da justiça.
É importante destacar que a atuação política do juiz, em explícito conluio com a promotoria, ao arrepio do direito, foi o único caminho encontrado – na medida em que não se tinha nenhuma prova, apenas convicções político-partidárias – para se condenar Lula. Isso significa que não foi a corrupção praticada pelo juiz o que manchou o processo contra o ex-presidente Lula. O processo somente se tornou possível graças à corrupção do direito. Sem um processo viciado, em um contexto de preservação das garantias democráticas e constitucionais, o ex-presidente Lula não poderia ser condenado.
A compreensão contemporânea de Estado Democrático de Direito encontra seus fundamentos na moderna teoria política. Especificamente sobre a importância do juiz na consolidação e manutenção do direito, como caminho para a justiça, destaca-se a contribuição do filósofo inglês John Locke (1632-1704). Como filósofo contratualista, o pensamento de Locke pode ser considerado como uma das principais referências da teoria política moderna. É interessante frisar que Locke não é elencado como um pensador radical, vinculado a um pensamento revolucionário. Sua contribuição teórica situa-se no campo do constitucionalismo liberal.
Na concepção política de Locke a legitimidade de um governo reside no consentimento da maioria. A sociedade organiza-se como Estado por meio de um contrato social. Ao Estado cabe garantir a efetividade e a universalidade de todos os direitos – à vida, à liberdade e à propriedade. Para o filósofo, todos os indivíduos nascem em condições de igualdade, em sentido jurídico. O que traria coesão à sociedade seria justamente a atuação de um juiz imparcial, habilitado a instaurar uma ordem pautada no direito e na justiça.
O que se coloca em jogo, nesse evidente flagrante de corrupção judicial e fraude processual, vai além das temáticas de inocência e liberdade de Lula. As conversas entre juiz e promotoria escancaram o que já estava sendo denunciado pelas forças democráticas: Lula é um preso político. O impeachment foi a forma do golpe de estado de 2016. O povo brasileiro teve a sua prerrogativa democrática violada. Os conspiradores, com a prisão política de Lula, almejavam influenciar no resultado da eleição presidencial de 2018. O que de fato aconteceu. Em uma sociedade democrática o processo eleitoral, como expressão máxima da soberania popular, é sempre revestido de uma autoridade fundamental, pois é o momento em que o povo manifesta, por meio de sufrágio universal, sua vontade e anseios. Fraudar e/ou manipular esse processo – que tem uma dimensão sagrada no sistema democrático – consiste em conspirar contra o povo, o país, a Constituição.
Neste ponto, o pensamento político de Locke avança para uma coerência inovadora, na medida em que o filósofo advoga que os indivíduos, na manutenção e defesa de seus direitos, podem e devem se rebelar contra o poder estatal estabelecido, caso este passe a atuar de maneira contrária e em aberto prejuízo aos objetivos fundamentais para as quais foi fundado – a efetiva garantia de direitos. É o direito à resistência, que coloca os governos sob o constante julgamento do povo e os obriga a uma irrestrita observância do contrato social firmado, no caso à Constituição de 1988.
A compreensão política de Locke é assertiva e contundente. As forças que articularem para a promoção do rompimento do pacto social, usurpando direitos constitucionais e lançando a sociedade a um estado de guerra, devem ser execradas, repudiadas e combatidas com o máximo vigor. A preservação da sociedade, ancorada na efetivação dos direitos, é a única justificativa para a existência de qualquer governo.
As medidas que retiram direitos constitucionalmente consolidados, tornando ainda mais precárias as duras e já difíceis condições de vida da população mais pobre – como a proposta de reforma da previdência social –, não deixam de representar um claro ataque a uma ordem social pactuada. A obediência aos governos tem como ponto de equilíbrio e referência justamente a preservação, garantia e manutenção de tais direitos. Seguindo a análise teórica de John Locke, cabe ao povo brasileiro resistir a esse estado de coisas, forjando, na luta política, a restauração do pacto constitucional.
O desafio histórico que se coloca para a sociedade brasileira consiste na reconstrução de uma democracia de alta intensidade, que seja dinamizadora de uma sociedade equânime, atenta aos direitos humanos, com estruturas voltadas ao pleno desenvolvimento das potencialidades de todos os cidadãos – reconhecidos em sua dignidade. É preciso que as forças políticas do campo democrático se articulem, desencadeando um amplo movimento em defesa da imediata liberdade de Lula e da Constituição de 1988.
Adelino Francisco de Oliveira é professor de filosofia no Instituto Federal campus Piracicaba e um dos editores do Diário do Engenho.
Num país sério, o juiz já teria pedido demissão. O ego dele é muito grande ainda mais apoiado por um presidente fake. 😡😡😡