Por Francine Ribeiro.
1- A ficção que parece realidade
O filme Coringa (Joker- 2019), dirigido por Todd Phillips e com a impressionante atuação de Joaquin Phoenix, é mais um filme que faz a gente sair do cinema sem rumo e mudo. Para quem não gosta de filmes de super-herói ou desse universo das HQs, ainda vale a pena considerar ver Coringa.Se você é professor/educador e trabalha com adolescentes, mais um motivo para vê-lo. Se você se incomoda com a banalização da violência promovida ultimamente por autoridades públicas, outro bom motivo para ir ao cinema e conferir Coringa. Mas o meu objetivo não é fazer propaganda do filme. Então vamos ao que interessa.
(Aviso: o texto a seguir contém spoilers!)
Na telona vemos o retrato de um indivíduo em sofrimento psíquico e emocional, um loserdentro de uma sociedade totalmente doente e disfuncional. Um palhaço que tenta ganhar a vida fazendo propaganda para comércios de rua. Há lixo por todos os lados, barulho, gente andando feito zumbi por uma cidade suja, escura e muito feia. O protagonista vive num prédio que mais parece um edifício abandonado. Mora com uma mãe adoentada, frágil, que passa os dias diante da TV assistindo a programas de humor e noticiários, uma alternância entre o riso provocado por piadas de qualidade duvidosa e o horror diário da cidade, enquanto espera a chegada do correio, de alguma resposta do ex-patrão para quem trabalhou no passado. Ela acredita que aquele bom homem quando souber como ela e o filho vivem, certamente virá em seu socorro. Entre o cuidado da mãe e o trabalho, o personagem frequenta sessões de terapia num cômodo claustrofóbico, com as paredes tomadas por estantes entulhadas de papéis, onde ele consegue um papel que lhe garante medicamentos de graça. O quadro é desolador. Mas Arthur Fleck quer ser comediante e numa espécie de diário anota seus rascunhos para um show de stand-up. A vida, por sua vez, insiste em bater no personagem: adolescentes roubam sua placa de anúncio, ele tenta recuperá-la e leva uma surra dos moleques que acabam por quebrar a placa.
O chefe chama Arthur e diz que tem muitas reclamações dos clientes, o dono da loja reclama a placa que ele perdeu, Arthur tenta se justificar e leva bronca. Os colegas de trabalho, outros palhaços, riem e zombam de Arthur. Um deles tem a brilhante ideia de oferecer uma arma ao personagem, para que ele se defenda de bandidos e moleques que roubam tudo e fazem maldades. Entre muitas coisas ruins que lhe acontece, Arthur é mandado embora do emprego e é avisado de que o programa de saúde que frequentava semanalmente foi cancelado: não teria mais reunião nem remédios. Na volta para casa, três homens bem vestidos (de terno e gravata) e bêbados, depois de importunarem uma jovem, partem para cima de Arthur e mais uma vez ele é espancado.
A cidade tomada pela sujeira – montanhas de sacos de lixo pelas ruas e muita pichação – e pela miséria é o cenário perfeito para que a revolta e a violência se alastrem e junto com eles o ódio aos ricos, uma pequena parcela daquela sociedade decadente que segue imune a todos os dramas vividos pela massa. Uma elite que vai ao teatro e ao cinema com suas roupas e chapéus elegantes, confiantes de que desfrutam daquilo que merecem porque se esforçaram para ter aquela vida. O sonho de Fleck é participar do famoso programa de humor da TV. Um dia, um vídeo seu, de um stand-up, vai parar na TV. Mas ele é ridicularizado e humilhado pelo apresentador.
Em meio a tudo isso, cresce o motim na cidade, principalmente depois que três homens são assassinados no metrô por um sujeito vestido de palhaço. A cidade está fora de controle. Arruaceiros tomam conta de cada esquina: roubam, pilham, matam, botam fogo em tudo. E todos vestidos de palhaço. Pois, um sujeito da elite, Thomas Wayne, que pretendia estrear na política, apareceu na TV chamando toda aquela multidão de insatisfeitos e revoltados que de certa maneira, haviam comemorado o assassinato dos três homens de bem no metrô, de palhaços.
2- A realidade
Foi também através das telas de TV que um sujeito medíocre e sem graça ganhou notoriedade num programa de humor. Ele não queria ser comediante, mas os comediantes do programa achavam que daria uma boa piada o discurso destemperado daquele político sem brilho e rejeitado pelos próprios colegas. Achavam que seus ataques preconceituosos e sua defesa descabida da ditadura poderiam ser motivos de risadas (e de pontos de audiência). Funcionou, muita gente teve notícia de um deputado sem noção, racista, homofóbico e machista. Mas não acharam graça. Levaram a sério. Acharam que ele representava bem suas próprias insatisfações. Suas falas grotescas e violentas encontraram eco numa população sofrida e cansada de sentir feita de palhaço por uma classe política que finge bons modos, que faz discurso politicamente correto, mas que não sente nenhum pudor em aceitar suborno, em participar de esquemas ilícitos, em se sentar na mesa dos poderosos e fazer acordos indecorosos. Mas o deputado-comediante era diferente. Ele era sincero, dizia exatamente o que todos queriam dizer. E foi assim, fazendo sinal de arminha com as mãos, defendendo o armamento da população, a pena de morte, negando a história e mentindo descaradamente, que esse sujeito virou presidente. Embora chamado de mito por seus seguidores, o que pode nos remeter a figura do herói tal qual nos mitos gregos, o sujeito em questão nada tem de herói. E se quisermos reduzir o mundo ao maniqueísmo das HQs, certo mesmo seria chamá-lo de vilão.
No entanto, como nos mostra o filme Coringa, a personalidade do vilão pode ser muito complexa. De modo que, ao contar a história da construção dessa personalidade de vilão, cai por terra o próprio maniqueísmo herói-vilão. Diferente do que esbravejava o deputado-comediante, bandido não é uma condição de nascença. Não se nasce bandido, não se nasce vilão. Mas muitos fatores podem nos ajudar a entender como alguém se torna um vilão ou um bandido. E contar essa história, ao contrário das acusações feitas ao filme Coringa, não é justificar suas ações de vilão, nem retirar sua responsabilidade pelas ações cometidas. Mas pode ser uma maneira de evitarmos que outros vilões apareçam. Humanizar o vilão, mostrar a complexidade de ser humano, pode servir como vacina ou antídoto num mundo sujo e tão propício a espalhar sua sujeira aos quatro ventos.
3- A realidade que parece ficção
O deputado-comediante-sem-graça que virou presidente teve uma infância pobre numa região que, como muitas outras de seu país, era dominada por uma elite, um coronel ou coisa do tipo. Ele, quando menino, experimentou esse sentimento de revolta, tão comum a quem em sua condição se vê diante da fartura de uns poucos. Não parece fazer sentido, os perrengues diários de muitos versus a abundância e excessos de uns poucos: casas luxuosas, carros, piscinas, crianças que podem tomar sorvetes, enquanto se vive numa pequena casa de dois quartos, com mais cinco irmãos e é preciso trabalhar desde garoto para que a família tenha como sobreviver. Dá raiva mesmo. Sentimos que é injusto. Essa talvez tenha sido a primeira e mais profunda experiência do nosso personagem com o sentimento de ‘ódio aos ricos’.
O deputado-comediante quando adolescente assistiu a uma caçada, de mocinhos contra bandido, e desde então, achou que o mundo era assim, divido entre bons e maus. E ele decidiu que estaria do lado dos ‘bons’. Foi para o exército. A guerra entre mocinhos e bandidos, heróis e vilões, foi cultivada na sua curta inteligência. Misturando esse episódio com aquele ´ódio aos ricos’ da infância, nosso personagem escolheu como seu inimigo um dos herdeiros daquela família poderosa da pequena cidade de sua meninice. E a ditadura que prendeu e matou seu inimigo, se transformou em sua grande heroína. A ditadura fez justiça contra aquela família mesquinha de ricos da sua infância pobre.
Mas não era bem no exército que ele queria ficar – talvez lhe faltasse destreza com as armas, embora devote a elas certa fixação fálica, pois mesmo armado, certa vez foi assaltado e levaram sua moto. E foi depois de quase liderar um motim no exército por aumento de soldo e de um plano frustrado de explodir bombas em quartéis do Exército que ele se tornou político.
Se o Exército era o lugar dos mocinhos, ao se rebelar contra o exército, nosso personagem estaria indo para o outro lado, o dos bandidos? E foi na condição de político que ele defendeu bandidos sem nenhuma cerimônia: fez apologia às milícias (e, hoje sabemos, manteve amizade próxima com milicianos, inclusive empregando familiares deles no seu gabinete). Diz o ditado que filho de peixe, peixinho é, e no caso do nosso personagem, os três filhos são políticos e também empregaram milicianos e familiares em seus gabinetes. Que fique claro, não acredito que seja uma questão de natureza ou essência. Mas não duvidamos que o exemplo e o hábito tenham forjado na prole os mesmos maus comportamentos do progenitor.
Nosso personagem, assim como o Coringa, talvez tenha uma dificuldade em discernir entre realidade e imaginação. Pior, talvez tenha sérios problemas em aceitar que a realidade não se submete à sua imaginação. Essa insubordinação o deixa muito contrariado, e é preciso atacar a realidade, violentá-la a fim que de que se adeque aos seus desejos.
O que não falta são pessoas dizendo que nosso personagem, tal qual Arthur Fleck, sofre de algum transtorno mental. Mas até hoje essas acusações são só boatos. Mas quem se dispõe a analisar as falas do nosso personagem, rapidamente encontra: sinais claros de ressentimento; uma insegurança mal disfarçada que aparece na forma de ataques a tudo e a todos; alguns temas recorrentes em seus discursos e ataques que revelam possíveis traumas de infância ou baixa autoestima; uma mania de grandeza e ao mesmo tempo de perseguição, comportamentos tipicamente paranoicos.
Muito provavelmente nosso personagem, da mesma maneira que Arthur Fleck, precisou de ajuda e, é bem provável, também se viu abandonado e sozinho. Não sabemos bem quem foram seus algozes, mas é possível arriscar que aquela família rica da sua infância personificou o alvo do seu ódio ao mesmo tempo que figurava como culpada por sua pobreza e as mazelas que certamente viveu junto de sua família na infância. Talvez de maneira até inconsciente, seu objetivo sempre tenha sido ocupar o lugar dos seus inimigos. A sua ganância foi observada durante a passagem pelo exército. Hoje, na pequena cidade da sua infância, é o seu sobrenome que se destaca no comércio local.
Hoje sua família é adona da cidade. Chegar à presidência era tão impossível, que ainda hoje, claramente, nosso personagem não consegue lidar com a realidade e vive no eterno papel do candidato, no palanque, fazendo promessas e bravatas, instigando as massas à violência e ao caos. Com um palhaço na presidência, lendo as notícias a gente ri, mas é de puro desespero, de nervoso. Estamos experimentando a doença de Fleck. Porque o presidente-palhaço continua sem graça, o país cada dia mais parece aquela cidade feia e suja da telona, a miséria cresce, o número de desempregados e da violência também, enquanto partes do país ardem em fogo, tal qual a cena final do filme. E quando o presidente abre a boca, como seu discurso tresloucado na ONU, o que se ouve é uma piada de mau gosto. Ninguém ri. Mas é bem possível que o mundo vire as costas para esse país. E como não se trata de um enredo de HQ, não adianta esperar um herói para nos salvar. Uma coisa é certa: só o caos é a garantia de que ele continuará reinando, e por isso também nosso personagem não pode abandonar seu papel: o de palhaço que põe fogo no circo.
Francine Ribeiro é filósofa e professora no Instituto Federal de São Paulo campus Capivari.