O Brasil precisa dos seus militares

O Brasil precisa dos seus militares

31 de março de 2025: o Brasil lembra – ou deveria lembrar – que há 61 anos os militares tomaram o poder no país, deixando-o somente em 1985, após um longo regime de terror (de modo que em 2025, numa perspectiva positiva, há sobretudo que se comemorar 40 anos de democracia, o que não é pouco para a história nacional). Democracia na qual, inclusive, neste ano de 2025, um ex-militar (rejeitado pelos próprios pares quando na ativa, registre-se), após o exercício de vários mandatos parlamentares absolutamente medíocres, e logo em seguida a deixar o exercício de uma presidência da república totalmente desastrosa, é tornado réu, num julgamento tecnicamente impecável do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Não bastasse este motivo para acender com alegria as velinhas dos 40 anos de democracia no país, ainda aparece um presente da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas dos EUA: um Oscar pelo maravilhoso Ainda estou aqui, que quase conquistou outra estatueta para a Fernanda mais nova (Torres), filha da outra, mais velha (Montenegro), também quase laureada com a famosa estatueta em momento anterior.

Convém lembrar que o golpe militar de 1964 foi amplamente apoiado pelo governo americano, no contexto da Guerra Fria, sob as chuvas e trovoadas que representava, na mentalidade estadunidense de então, a revolução cubana de 1959. Era grande o temor dos americanos de que ocorresse o alinhamento de outros países de seu “quintal” à União Soviética.

Os militares brasileiros foram, pelo menos de 1964 até o fim da década de 1970, pode-se dizer, um “jardineiro fiel” dos americanos, ceifando sem dó nem piedade tudo (inclusive vidas humanas) que, mesmo de longe e fracamente, cheirasse a comunismo. Antes de governantes de um potencialmente rico país continental, os sucessivos presidentes militares dos brasileiros de então funcionaram como sargentos americanos contra os soviéticos na América Latina. O senador Robert Kennedy, em dado momento, discursou sobre a situação no Brasil, que visitara antes do golpe: “Os militares conseguiram do Congresso a eleição do General Humberto Castelo Branco para Presidente, com um governo de tecnocratas de grande capacidade, de engenheiros e de economistas. E centenas das principais figuras políticas do Brasil foram presas ou proibidas de ingressar na política.” Pessoas essas, presas (sem mencionar mortes), que serviam ao governo violentamente deposto de João Goulart, assim qualificado pelo senador adepto da Aliança para o Progresso: “Embora não fosse comunista, pensou poder ´cavalgar o tigre´, e colocou muitos comunistas em altos postos do governo e nos sindicatos controlados por esse mesmo governo. Só no fim de seu período houve um esforço, ainda assim demagógico, pela reforma agrária; nenhuma reforma fiscal foi ao menos tentada. Como representante especial do Presidente Kennedy, visitei-o em 1962 para dizer que nosso fundo de ajuda estava sendo inteiramente dissipado e não estava tendo qualquer efeito na vida do povo brasileiro; mas nenhuma reforma se fez.”

Não é necessário alertar ninguém para o fato de que os mais recentes governos americanos tiveram postura extremamente diferente daquela dos anos da ditadura, face ao Brasil. A relação do Presidente Lula com seus homólogos americanos nos anos 2000 sempre foi muito pró-ativa (exceto com Trump, e mesmo assim sem grandes problemas no primeiro mandato deste), acerca de temas globais e do relacionamento Norte-Sul no continente americano; Obama chegou mesmo a adjetivar Lula de “o cara”. Isso é fruto, provavelmente, de três fatores: o Brasil se tornou uma potência média significativa (o que estava longe de ser nos anos 1960-70), a democracia brasileira finalmente amadureceu, a União Soviética derreteu e terminou a Guerra Fria.

Isso tudo leva a concluir que o Brasil não precisa mais dos militares? Não e não. O que o Brasil não precisa – e na verdade jamais precisou: eles é que se impuseram unilateral e prejudicialmente (armas nas mãos) ao país, desde 1889 – é de militares que exorbitam das suas funções profissionais e de servidores públicos, de militares que se voltam contra seu povo, em vez de cuidar da defesa externa. O governo deve, sempre, ser civil, numa verdadeira democracia, para a qual talvez (e oxalá) estejamos caminhando. E em tal tipo de governo, os militares são fundamentais, como Forças Armadas que protegem fronteiras e rechaçam eventuais ataques externos.

E aí cabe perguntar, aos militares atuais, especialmente aos mais jovens, em 2025:

  1. Que lições tiraram os militares da “aventura” de 1964-1985? – foi um erro ou foi um acerto? E mais: o que a participação de alguns militares no governo Bolsonaro e na tentativa frustrada de golpe recentemente urdida por este, significa – um atentado à democracia ou um fracasso que tira o Brasil da rota certa a percorrer, deixando-o nas mãos… de comunistas?

  1. O momento socioeconômico e geopolítico global de hoje é tanto ou mais conturbado que o vivido no período 1960-1980 (com as independências de antigas colônias, com o grito de amor e liberdade da juventude hippie, a Guerra do Vietnã, as crises do petróleo e as crises das dívidas externas etc.), já que em lugar da Guerra Fria, se coloca hoje a guerra comercial/financeira/monetária contra a China, que à boca pequena a Europa mencionava e que, boca no trombone, Trump começa a alardear sem freios. De fato, uma disputa em larga escala, econômica e geopolítica, está em curso, no processo de transição da hegemonia americana (ou pax americana, como alguns apelidam) para outra, provavelmente centrada no Leste, mormente na China. Em especial, chama a atenção o abandono da Europa pelos Estados Unidos, no confronto entre Ucrania e Rússia – o foco é outro: o avanço chinês. Fato reforçado pelo tratamento diferenciado do novo governo americano à crise Israel-Hamas e pela ameaça de anexação da Goenlândia.

Começa a saltar aos olhos que os atuais militares brasileiros, das três forças, precisam estudar, informar-se, esclarecer-se e responder à Nação: têm clareza do que está acontecendo no mundo, estão se preparando (profissionalmente e tecnologicamente) para enfrentar as ameaças que porventura surjam neste novo mundo que está se desenhando, enquanto força bruta que são e que deve servir aos objetivos e interesses do país neste novo cenário?

Talvez fosse o caso, como evento não meramente comemorativo dos 40 anos de democracia, que o Congresso Nacional organizasse audiências públicas (sem ódios nem revanches, com cortesia e profissionalismo) para ouvir as Forças Armadas acerca de sua leitura/avaliação do momento estratégico global atual (com especial olhar para o subcenário sul-americano) e das suas perspectivas quanto às necessidades/capacidades para lidar com ele em termos de forças terrestres, navais e aéreas. Em tais audiências, que seja dado aos servidores públicos militares a oportunidade de perguntar aos civis: a que diretrizes diplomáticas devemos nos subordinar e com que recursos orçamentários poderemos contar para nos equipar e preparar recursos humanos à altura?

Adicionalmente, 2025 poderia ser declarado o Ano da Renovação do Ensino Militar. Já é tempo de repensá-lo, em diálogo com a diplomacia e com a universidade brasileira. Já é tempo, não: há muito isso deveria estar sendo feito. Durante a ditadura havia a Escola Superior de Guerra, espaço de debate e elaboração, lá com seus vieses, mas havia. O governo Bolsonaro pôs fim à antiga Escola Superior de Administração Fiscal (ESAF) e entregou suas ótimas e belas instalações aos militares: o que tem sido feito deste recurso? Já que um tema civil estratégico (política fiscal) deixou de ser debatido ali, não seria o caso de temas militares democraticamente tratados florescerem em seu lugar, com a participação de servidores civis e, em alguns casos, de representantes da sociedade civil?

O Brasil precisa de seus militares (jamais em absurdas “escolas militares” no ensino médio – de que esgoto mental tiram essa ideia?), assim como precisa que eles se profissionalizem e se equipem frente à nova e global sociedade do conhecimento/informação, sob pena de o país permanecer despreparado para o que está por vir ou pode surpreender os incautos no mundo conflituoso que está se desenhando. Além disso, a necessidade de cobrar responsabilidades e punir – respeitando o devido processo jurídico – figuras militares específicas, golpistas do passado e saudosos desta época que gostariam de reeditá-la, não pode se misturar ou se confundir com a necessidade de ampliar e valorizar as tropas e oficiais que se coloquem no seu devido lugar no Estado democrático a que devem servir.

(Dedicado ao Coronel Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, com quem muito aprendi como seu bolsista no Núcleo de Estudos Estratégicos (NEE) da Unicamp, quando estudante de Economia.)


Valdemir Pires é economista e escritor.

 

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