De Sempre era um burro vistoso – desses burros que a gente vê de longe e sabe logo que se trata de um burro. Espalhados pelo país (digo, pela floresta), De Sempre tem família larga e vasta. Quase sempre não são ricos. Também não são lá os melhores exemplos de inteligência e intelectualidade – para usarmos aqui um eufemismo. Burros como De Sempre vivem mesmo é de olho no que fazem os corcéis, os alazões – que toda a espécie de burros adora! Como De Sempre, os burros não se acham nem se sabem burros. Para eles, os burros são como os cavalos mais robustos e rústicos – só que menos importantes. De Sempre, como sempre, e sempre sem negar a sua espécie, ama os cavalos classe A – e os defende sempre, orgulhando-se muito disso. Burros e Mulas como De Sempre não mudam nunca. Seguem o que os cavalos mais vistosos dizem e carregam para eles o peso que for necessário carregar. E seguem a vida. Seguem. Sempre sendo burros como De Sempre.
Verde-amarelo, o avestruz, esse sempre foi mais garboso que os burros e mais exibido do que os cavalos. Seu porte vistoso brilha quase como o de um pavão à luz do sol – mas sem a verdadeira elegância desses. Verde-amarelo, como boa espécie de avestruz, quer ser visto pelos demais como uma ave rara – apesar de grosseira. Para serem vistos, o avestruz Verde-amarelo e os demais da sua espécie adoram desfilar pela floresta exibindo a cauda bicolorida – tão cafona, tão piegas, tão brega – e se acham lindos. O avestruz Verde-amarelo, diga-se de passagem, não tem voz bonita. Seu canto é mais triste que o canto de morte dos cisnes. Mas eles, todavia, capricham. Batendo as asas como um galo, os avestruzes verde-amarelos cantam aos sábados, aos domingos (especialmente depois das missas) e feriados a sua canção horrorosa pelas ruas e avenidas da floresta. Na verdade, quando começaram com essa mania de cantar pelas ruas alguns tentavam disfarçar seu canto triste batendo panelas. Hoje, como o mundo está desse jeito – como escreveu certa vez Guimarães Rosa – os avestruzes verde-amarelos não batem mais panelas. Pelo contrário. Agora, quando ouvem as panelas sendo batidas por outros bichos contra eles, saem correndo e enfiam a cabeça debaixo da terra – se esquecendo, é claro, que deixam a bunda plumosa à mostra.
Neste sábado, como não poderia deixar de ser, o avestruz Verde-amarelo e alguns de sua espécie saíram novamente às ruas para cantar seu canto horrendo. Estavam mais agitados do que nunca. Para mostrarem que são aves de bem e de família, os avestruzes como o Verde-amarelo tiraram a cabeça da terra (que eles acham que é plana, vejam se pode!), limparam bem a plumagem e se foram pelas ruas, grasnando seus lemas pela floresta. O burro De Sempre e os seus, que estavam sem ter o que fazer em casa, resolveram engrossar o bando. O burro De Sempre, à frente do grupo, sentindo-se belo como um cavalo classe A, batia seus cascos ferrados e relinchava contente. (Que parada estranha para um sábado, meu Deus! Aliás, no céu, Deus devia estar mesmo era pensando por que cargas d’água havia pedido a Noé, um dia, para salvar um casal dessas espécies). Na floresta, os Verde-amarelos em seus carrões seguiam na frente e os burros como De Sempre iam (como sempre) atrás, num desfile idiota e sem sentido (o que comprova que Deus errara mesmo ao mandar salvar burros e avestruzes).
Para piorar a cena grotesca – de deixar a Deus querendo morrer de vergonha e desgosto –, das janelas dos prédios, das janelas das casas, pela televisão, nos rádios e nos jornais os demais animais da floresta anunciavam uma nova pandemia – e pediam a todos, inclusive para as duas espécies estranhas que desfilavam, que fossem embora para suas casas, porque uma grande praga estava se alastrando pelo floresta podendo matar a todos. O Verde-amarelo, demonstrando seu discernimento limitadíssimo, disse que não – que jamais iria parar, afinal precisava colocar a lojinha para funcionar (essa espécie quase sempre tem algum pequeno estabelecimento comercial ao qual chama de “empreendimento” ou “empresa”). Os Burros como de De Sempre – que quase sempre não tem onde caírem mortos – seguiram e relincharam atrás dos belos avestruzes – acreditando que os avisos para deixarem as ruas eram algum tipo de conspiração das aves vermelhas, dos papagaios da imprensa ou das tartarugas da economia. Jamais! – zurrava o burro De Sempre imitando aos avestruzes – a nossa bandeira jamais será a das aves vermelhas!
Depois? Ora. Não há depois. Os avestruzes como Verde-amarelo voltaram a colocar suas cabeças dentro da terra, alienados de tudo e de todos – esperando apenas que seus ovos lhes rendam vultosos lucros, mesmo que, para isso, morram alguns de sua própria espécie ou de outras, como a do burro De Sempre. Já os burros como De Sempre voltaram, como sempre, para seus estábulos – talvez mais burros, mais zurros e certamente mais doentes do que antes e sempre.
Moral da história? Não há, meu amigo. Ou melhor, trata-se de uma história imoral. Imoral e triste. A floresta parece que não muda nunca. Avestruzes verde-amarelos e burros como De Sempre continuam a nos matar de vergonha e tristeza. Sempre.
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
O texto é excelente! A ironia é sempre mais expressiva que a seriedade. Mas, não aprovo comparar com animais. Eles seres ignobeis não merecem comparação com os animais. Eles não pertencem a Natureza!!