O ar tem cheiro de lembrança. Deixa, deixa. Que o tempo é assim senhor dos idos e vindos. O tempo o. No hoje, Guimarães faria cento e dez anos. No hoje – vinte e sete do seis. Cento e dez. Agora sem Rosa. Gênio maior da prosa brasileira desde que o século se deu em vinte. Talvez, no assim dizer das coisas de quem estuda e ama, seja ele mesmo, o ido, em maior do de todos. Um quase-deus. Assim. Nem Machados-Amados, nem Azevedos-Bragas, nem ninguém no talvez dos vocábulos. Nonada. Que o mestre, Deus o fizeste, e se fizeste, do jeito em beira das gentes – nem mais, nem menos. Eternoso. Justo. Trino. Perfeito.
Da glosa mole do povo, tirou seus riscados escritos. Criou modos. Criou marcas. Criou ditos. Inventivo que inventoso. Seus causos-histórias são a lida cheirando a terra seca do ser tão mineiro que o era e o é – em sendo – palavra. Na verdade verdadeira, o mestre era Rosa, mas o era por erro de destinação. Pois no devir a ser, no dito, no certo dos acontecidos divinos, o mestre devia era se chamar Palavra. Guimarães-Palavra! O mais é com o que não se vê – que ele também costurava o seu tanto em superstição de não se formar forma, de nunca dizer o de não se dizer. Nunca.
Palavra-acesa. Palavra-Rosa. Rosa-Palavra. Guimarando. E suas linhas se foram formando em rendilhado trabalhoso. Destino. História. Lá e aqui como sempre – como todo. Foi homem do mundo inteiro. Diplomata. Diplomoso. Contra o que não se pode dizer o nome ergueu sua miopia-vista, e pegou de jeito sem medo nem contra-medo. Em terras distantes, cumpriu-se em Rosa a Cruz dos desesperados. E lá estava ele – coragem em pele e osso – dando possibilidade de fuga a quem da guerra por sua via fugia. Sua arma era o papel. Assinado e sulcado. Passaporte esperança nas mãos de quem a morte já via perto. Por isso, num cemitério em Israel, descansa – em sua homenagem – uma árvore-gratidão plantada no para sempre.
Da terra e para terra dos mortais pobres-homens sem tino, deixou seu amor aos pequeninos, ao miguelins e miguelzins. Deixou sua devoção aos torrões de Manuel e Manuelzões. Deixou a saga de seus contos de rama sem fim: histórias de corpos-fechados, de sentidos abertos, de forças do invisível em manifestação verbo-espectral. Ave! E como não seria o que foi ido? Nascido na cidade coração, Cordisburgo por invenção dada, o mineiro do sertão mineiro virou astro, virou nuvem, virou prece, oração. Quase evangelho a ser ler de joelhos pregados no chão. Mestre de Academias – mesmo que das mais frias – de letras e sabedorias infindas. Criou um mundo volumoso, uma eu-obra-criação.
Depois de tanto ter criado e deixado, subiu em alturas de urubuir-não-ir. E foi-se indo. O ir. Agora, vive apenas em modo, um ser-em-palavra-flor. Guimarâneo, virou livro de si para si mesmo: literatura-em-corpo. Tomou forma própria e conteúdo a boiar numa terceira margem, para o todo, para todos, para tudo. Legenda. O todo! Mistério. Que o menino de lá, hoje no etéreo do não ser e ver, certamente, para cá, sorri e diz: “Nossa! Deixa, deixa!”
Salve, para sempre, o verbo-existir: João Guimarães Rosa!
Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.
Alê, seu texto está delicioso!! Obrigada por mais esse presente que você oferece a seus leitores!