“Ninfomaníaca”: uma viagem opaca pelo mundo dos vícios

“Ninfomaníaca”: uma viagem opaca pelo mundo dos vícios

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Lars Von Trier, o diretor da mais que polêmica película intitulada Ninfomaníaca – que veio a público no dia 10 de janeiro de 2014 – é conhecido por ser um dos pioneiros do manifesto Dogma 95, que defende o cinema realista, menos comercial, através de regras que impedem uso de tripés, câmeras digitais, efeitos especiais, trilha sonora incidental, entre diversos outros aspectos que fazem parte da linguagem cinematográfica com a qual o público já está acostumado.

O cinema autoral de Lars, apesar de não fazer mais as vezes transparentes do Dogma, ainda apresenta resquícios do manifesto. Porém,desde Anticristo, o cineasta vem expondo cada vez mais o intimismo humano através de imagens oníricas e sequências que mais parecem pesadelos.

Segundo o próprio diretor, Anticristo e Melancolia eram a primeira e segunda parte do que seria a “trilogia da depressão”, a qual Ninfomaníaca vem completar. Mas, ao contrário dos antecessores, este é um longa muito mais bem humorado.

Ninfomaníaca-PosterNão demora muito para o espectador perceber que a película continua dialogando com a mítica questão de Apolo contra Dioniso. Já na abertura, apenas ouvimos a água, símbolo dionisíaco, antes da imagem aparecer e localizar o beco escuro em que a protagonista se encontra jogada e ferida.
Joe (brilhantemente interpretada por Charlotte Gainsbourg) é encontrada por Seligman (Stellan Skarsgård), um simpático “bom samaritano,” que acolhe a moça e escuta pacientemente os relatos de sua vida, a fim de saber por que ela se considera um “ser humano ruim”.

A imagem e o som presentes na obra vão muito além de representar apenas o real. Durante os relatos de Joe, as memórias se misturam com as análises feitas pelo ponto de vista científico e matemático de Seligman, que faz as vezes de Apolo, ao mesmo tempo que se misturam com certos aspectos fantásticos que surgem a partir do ponto de vista da personagem que os conta.

Temos, então, uma grande crítica aos explicativos do cinema convencional. O público não tem tempo de refletir sobre as viagens opacas de Joe. Seligman já explica tudo, desde as referências a outras obras até mesmo as explicações científicas aos fenômenos relatados pela moça. Lars foi muito criticado pela ambiguidade das interpretações de suas referências dentro das duas outras obras que compõe a trilogia da depressão. O Anticristo foi alvo de vaias e Melancolia rendeu ao diretor o título de persona non grata no festival de Cannes, não pelo filme em si, claro, mas pelas próprias palavras do cineasta nas entrevistas para a imprensa.

Isso tudo culmina em Ninfomaníaca e imprime ao filme um caráter crítico aos incríveis diálogos presentes nos momentos entre memórias e metáforas. Tudo é tão justificado que chega a explicitar o deboche da obviedade. Mas, muito longe de ser óbvio, o longa usa da imagem para exemplificar que muitas vezes é muito mais interessante mostrar do que falar. Quando, por exemplo, Joe diz “Ele me virou que nem um saco de batatas.” ao mesmo tempo a imagem que está na tela é a de um saco de batatas sendo virado literalmente. Será que precisava mesmo dos dois elementos – o falado e o visto?

A grande estupefação dos críticos fica por conta de percepção de como o público vem se tornando cada vez menos perspicaz em sua leitura  – a ponto de não conseguirem dar conta do que veem (ou do que ouvem) dentro de uma obra cinematográfica. Ninfomaníaca ri e aponta dedos, e se diverte mais ainda ao perceber que seu deboche não é notado pela crítica, que o considera como um erro não intencional da produção.

Até mesmo a trilha sonora parodia o cinema comercial. Durante a cena do trem ouve-se Born To Be Wild enquanto a personagem se sente selvagem. É o que acontece nos “filmes pipoca” da atualidade: ao invés de a trilha sonora acrescentar, ela apenas repete o que já está sendo visto.O vício se torna, então, um recurso de montagem, a repetição de elementos e ideias, o que acaba por mostrar que a obsessão sexual de Joe é apenas uma entre os diversos outros vícios de qualquer ser humano, tanto é que as cenas de sexo, ao contrário do esperado, são na verdade broxantes e evocam não apenas a infelicidade da personagem como também de quem assiste. Não é à toa que esta é a obra que completa a trilogia da depressão.

Quem esperava o choque do sexo explícito se enganou, é justamente no extracampo sonoro que Lars encontra a oportunidade de deixar o espectador boquiaberto. O final do filme é apenas ouvido, antes dos créditos subirem e encerrarem a segunda parte do longa, abandonando o público em estado de transe sem voltar atrás para mostrar visualmente mais nada. Quando isso é colocado após longos períodos de explicação, ilustração e exemplificação, ganha mais força de impacto.

Bem ou mal, Lars Von Trier sabe mexer com o público. Sua linguagem própria pode incomodar, mas é inegável o valor de suas obras dentro do cinema autoral, tomando como base outros autores do gênero, como Ingmar Bergman, Pasolini, Fellini, Almodóvar, Andrei Tarkovsky, entre outros que deixaram sua marca na história da sétima arte.

Numa época em que a arte adentra a cybercultura e passa a ser vendida cada vez mais depressa em um modelo de produção capitalista, diretores visionários como Lars Von Trier, Darren Aronofsky e Tarantino não deixam morrer a arte que Adorno e Horkheimer tanto temiam que se extinguiria com a ascensão dessa indústria cultural que domina e massifica o mercado cinematográfico na atualidade.

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Ballota

 

 

 

 

 

Ramirez Ballotta é aluno do terceiro semestre do curso de Cinema e audiovisual, da Universidade Metodista de Piracicaba/Unimep.

One thought on ““Ninfomaníaca”: uma viagem opaca pelo mundo dos vícios

  1. Parabéns pela leitura crítica, Ramirez. Os sites e colunas especializadas escandalizaram tanto, mas tanto, que só aumentou a minha curiosidade por assistir ambas as fitas (gostei mais da segunda, mesmo sabendo que uma é continuação da outra). Estava preparado para um pornô e não foi o que vi. E, sim, Lars Von Trier nunca decepcionou, pelo menos a mim. Foi assim com Dançando no Escuro, Dogville (maravilhoso), Anticristo e Melancolia.

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