Navegação

Navegação

Nem bem a luz era nascida ainda na janela, pela fresta, em tentativa de raiar o sol, e ouvi de minha cama-semeadura o som aquoso de um marulhar sobre pedras. Em de repente, dei que, por mim, eu nunca que sabia de córregos-mares pelas bandas aqui de casa. Em susto, suspendi as pálpebras-rameladas. O vai e vem das águas despertas despertava o amanhecer em meus ouvidos. O que seria de ser? Riacho? Onde?

Pensei-me que era melhor o ver com os olhos para o além dos idos. Então, perneei sobre o chão frio da manhã encerada em lustroso vermelhão a correr o quarto. No entreaberto da veneziana-janela, o vento provocava em frescor e ruído. O quarto, por seu tanto, inflava os pulmões de fluviais esperanças. No rosto, que era o meu, a surpresa do alívio refrescoso de ares que só vem de uma beira-rio, de uma beira vida-ribeira que, por ali, ninguém nunca via ou viu.

Pés no chão da história, abri as janelas do quarto como quem abre uma escotilha em plena navegação. Outra brisa úmida me tragou de um jeito que mareei enjoado. Curvo, quase me fiz anzol com as mãos no estomago. Depois, serenei. Seria impossível? De que gretas secas do existir daquela terra fluía a água que me achava ali, em ruído e leveza? Hesitei. Talvez fosse melhor o cerrar de meu quarto em proteção. Talvez fosse mais certo o voltar para cama-seara de sonhos, em espera da luz definitiva do dia – que o raiar do sol das certezas certamente traria uma explicação do se sentir assim das coisas.

Que nada. Transpus as janelas da alma pé ante pé e adentrei ao terreiro de minha casa. Os olhos a farejar o lusco-fusco da madrugada. Nos ouvidos, o chacoalhe de águas em corredeiras cada vez mais perto. Segui. As águas se fortaleciam a cada passo. Cruzei a roça-muda sob o nascer do dia. Passei por entre árvores-sombras a esconderem-me quintal. Saí pelo portão vazado de dúvidas e costurado de arames. Cheguei-me à rua de terra a fazer toda a cidade. O burburinho das águas a cobrar a imensidão de minha curiosidade incrédula.

As gentes se acotovelavam de perto ao coreto-navio que ali ancorara. Dentro dele, alguns poucos homens içavam velas enormes e brancas. O coreto-navio boiava numa espécie de lago que começava agora a converter-se em rio. As gentes não queriam crer, mas bem que gostavam do viam. A novidade, assim, boiava aberta, bem na cara do de todos. Ao  vento, o coreto-navio balouçava. Foi de vez que um marujo estendeu a prancha – rota de madeira sobrevoando as águas até o seco onde estávamos. “Todos a bordo!” – gritou em convite-quase-ordem. As gentes se entreolhavam com medo, espanto e vontade. As velas da embarcação, que antes era casa sonora, se estufavam no mais e mais.

“Todos a bordo!” – gritou o marujo pela segunda vez. Mas o povo ainda se temia todo. Não que não tivéssemos gana de subir. É que a vida em terra seca era raiz fincada no que sabíamos do existir. Era o que tínhamos tido até ali, até aquele momento de estranha aparição. A água, porém, como que numa bacia que se transborda em segundos poucos, continuava a vir à borda. Meus pés já sentiam o frio líquido dos novos mundos. Minha espinha, o frio do medo da mudança de rumos e prumos. E nos meus olhos as velas se seguiam estufando.

Ao longe, as luzes-bom-dia das casas foram se piscando e se acendendo uma a uma quando a água chegou às ruas do centro e bateu como sinal da peste nas portas dos não-escolhidos. Certo é que ainda havia tempo para se abalar em nados de desacorçoo até a praça e embarcar junto aos demais no coreto-navio. Mas as casas se riam desavisadas. Apocalipse? Apocalipse? Que nada! Risos-hienas de ironia ingênua nos cafés-da-manhã se deram como se davam e se dariam todos os dias. Em suas mesas-altares, os homens e as crianças sorviam a realidade com manteiga – invenção acostumada e ordeira de uma vida cotidiana – servida pelas mulheres recostadas à pia.

Na praça agora convertida em uma enorme margem, a água já avançava em fatal discurso diluviano. A cada vaga longa ou breve, o destino de todos cada vez mais certo. Do navio-coreto, alguns poucos marujos nos imploravam para embarcamos logo. Na margem cada vez mais curta da vida, as gentes também encurtavam os pés no seco que ia se sumindo. Era tempo. Quem se sabia? Era necessária também coragem – a ser tomada de imediato, como se tomam goles em cachaças de rolha em dias de alegria. Quem se teria coragem? Aquela gente de todo dia? Quando o terceiro e último “todos a bordo” foi dado, eu e alguns outros poucos já éramos marujos-navegantes que – em instantes – seguíamos rumo por novos destinos sonoros que  belicosos em nosso coreto-navio. Éramos agora artistas da fome, virados em palcos de novo querer e existir. Estávamos mudados num demais de repente. Estávamos ansiosos por construirmos um novo artemundo. E, apesar de felizes por estarmos a salvo, navegávamos também bastante tristes por vermos ainda, e ao longe, a cidade que amávamos e que se afogava em ondas ordinárias e frias. 

– Publicado também em “A Tribuna Piracicabana” de 27 de agosto de 2019.      

Alexandre Bragion é editor do Diário do Engenho.

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