Natal! Oh, Natal, a festa maravilhosa e anual
de nossa incorrigível hipocrisia, festa que melhor seria
se não se arvorasse em celebrar aquele a quem crucificamos a cada dia,
e que calcamos sob nossos pés piedosos, cheios de fé
de que merecemos o céu, o paraíso, talvez mais,
apenas por sermos esse nada ôco, ah!, antes ateus fôssemos,
para não agitarmos essas bandeiras de falsidade,
nos imaginando acima do pecado, apenas por pendurarmos
na parede, sobre a mesa de jantar, a Santa Ceia,
nosso autorretrato, Judas que somos, sempre dispostos
a receber mais trinta moedas de quem quiser pagar, e ainda trocamos tudo
pelo primeiro velho gordo de vermelho com um saco às costas,
simbólico evidente de nossa falência humana, incapazes de amor,
nossa pobre raça de víboras, a nos mordermos e destilarmos o veneno,
enquanto dançamos ao ritmo de nossos chocalhos e guizos,
essa dança macabra do egoísmo, que nem Cristo imaginou que haveria,
um dia, de nos lançar ao precipício da autossuficiência,
para nossa alegria, ao o vermos pendurado,
e enchemos os olhos de água, e dizemos com trêmulos na voz,
bendito seja, que morreu para nos salvar,
e que ainda nos perdoou, a nós, a humanidade,
que a cada dia se renova em seu nobre papel de algoz.
Tito Kehl é arquiteto, escritor e presbítero pela Ordem Hospitalar Sanjoanita. Autor de diversos livros, publicou em 2023 – pela editora Terra Redonda – o livro “Poemas ao Deus Desconhecido”.