por Jean Goldenbaum
Caros amigos e amigas leitores, este artigo nasce da maneira mais espontânea que poderia ocorrer, movido inteiramente pela inspiração dos belos acasos que às vezes se põem em nosso caminho. Divido com vocês. Minha esposa e eu, como fazemos todos os fins de semana, saímos hoje a passear pela cidade onde moramos há anos, Hanôver, Alemanha. Uma de nossas paixões é visitar os três lindos museus de Arte Moderna da cidade e hoje uma nova exposição no Kestner nos chamava. Ao chegarmos lá, nos deparamos com a informação de que a entrada hoje era gratuita. Boa notícia, alguns euros a serem economizados. As entradas nos museus aqui são normalmente baratas, plenamente acessíveis a todo e qualquer cidadão. Privilégio? Regalia? Não. Obrigação cumprida por parte do governo. Arte, Cultura e Educação devem ser alcançáveis a todos, afinal são riquezas essenciais à saúde mental e espiritual do ser humano. E, é claro, pagamos impostos por tudo isto. Muito bem, aqui na Alemanha de fato são acessíveis. E a população consome, o que é maravilhoso.
Mas voltando à entrada gratuita: a razão desta se deu hoje pelo fato de ser um dia aberto a famílias e crianças. De quando em quando, os museus oferecem dias assim, para estimularem a presença do público infantil e infantojuvenil nos museus. Disponibilizam inclusive o serviço de pessoas com formação pedagógica que guiam as crianças. explicando a respeito da Arte que estão a contemplar.
Comentei com minha esposa: “É de fato um retrato da contramão do que ocorre no Brasil hoje, não? No Brasil do obscurantismo… Enquanto por lá proíbe-se, censura-se e ameaça-se quaisquer tipos de manifestações sociais, artísticas e culturais que incomodem os planos ideológicos da extrema-direita, aqui estimula-se o diverso e o pensar. Chegando em casa escreverei um artigo sobre nosso dia”.
A história fica ainda melhor, caro leitor. A exposição era especialmente inteligente, ousada e progressista. Trazia obras desde os anos 1960 até hoje, de artistas norte-americanos que fizeram parte da histórica ‘CalArt’, instituto de artes da Califórnia.
O ponto forte deste apanhado de obras era a Arte feminina e feminista. Artistas revolucionárias como Miriam Schapiro (1923-2015) e Judy Chicago (*1939) já estavam realizando há 60 anos uma verdadeira revolução em relação ao desenvolvimento da expressão da mulher e da maneira como esta é vista pela sociedade. E tudo isso não poderia ser mais atual do que é nos dias de hoje! A luta por Respeito e Igualdade é a mesma, afinal os maus que trabalham para despedaçar este processo, também são os mesmos, ainda que de gerações diferentes. Sim, todo aquele que no Brasil votou (ou tirou o corpo fora nas urnas) em quem chama mulher de produto de “fraquejada”, é culpado ou cúmplice desta disrupção que vemos hoje no Brasil.
Enfim, sexualidade, status social, posição comunitária, tudo isso foi abordado por estas artistas heroínas, cujas obras hoje assistimos. E as crianças aqui tiveram hoje (e têm sempre) a imensuravelmente rica possibilidade de experienciar estes mundos artísticos e todos os astros infinitos que os orbitam.
Quero relatar ao/à leitor especificamente algumas partes da exposição. Uma delas, de autoria das acima citadas Schapiro e Chicago, se chama ‘Womanhouse’ (Casa da Mulher). Dividida em diversos ambientes, ela aborda com imagens, filmes e textos diferentes aspectos do universo feminino. Um dos filmes mostrava uma performance de teatro realizada diante de plateia nos anos 70. Nesta peça, duas atrizes interpretavam um homem e uma mulher, diferenciando-se exclusivamente pelo traje caricaturado que usavam: o “homem” possuía um pênis e a “mulher” uma vagina, ambos de borracha e desproporcionalmente grandes, presos às suas cinturas. As atrizes jocosamente encenavam os trejeitos das figuras masculina e feminina conforme a sociedade as molda, tecendo uma provocativa crítica às imposições sociais e sexuais da época – e que, de certa forma, são ainda as mesmas hoje (mesmo que com contemporânea roupagem). Abaixo algumas fotos:
E as crianças, sentadas no chão, assistiam ao filme, enquanto adultos explicavam a elas os significados, os símbolos, os valores negativos a serem quebrados e os positivos a serem construídos. E minha esposa e eu assistíamos com imenso prazer às crianças bebendo da mais divina intencionalidade artística. Cabe também dizer que havia crianças de diversas etnias, pois, para quem não sabe, hoje aproximadamente uma em cada três pessoas que residem na Alemanha é estrangeira ou descendente de estrangeiros (algo que considero uma bênção social e uma maravilha intercultural.)
Outro ambiente da ‘Casa da Mulher’ era o que a artista chamou de ‘O banheiro da menstruação’. Fotos de diversos tipos de pacotes de absorventes e também de absorventes já usados na lata do lixo, com o sangue da menstruação à mostra, compunham a cena. Minha esposa, com seu conhecimento feminino específico (que eu como homem não posso imediatamente ter, mas devo e quero a todo momento aprender), me explicou sobre o quão atual era aquele banheiro encenado. Hoje vive-se com intensidade o fenômeno de explicar à humanidade que a menstruação não deve ser vista como algo sujo e ligado ao excremento, mas sim como parte viva do existir feminino. Historicamente, a ideia da menstruação como algo sujo e impuro sempre funcionou como mais uma forma de diminuir a mulher frente ao homem. Achei tão belo tudo isso, como o ser humano possui a capacidade de evoluir, se quiser. Mas só se quiser…
Mais uma vez, meninos e meninas, juntamente com seus pais, assistiram à cena e, curiosos, apontavam, perguntavam e tinham suas mentes abertas e educadas em direção ao Respeito e à Tolerância.
Por fim, ao sairmos alimentados de Pensamento e Criatividade de nosso maravilhoso museu, ainda tivemos o prazer de ter saltados aos nossos olhos temas como liberdade de aborto e de orientação sexual. Ao sentarmos no banco da praça à frente, fotografamos a expressão da arte de rua, dos infindáveis panfletos grudados em todos os lugares, que fazem da cidade uma entidade viva e ativa:
Sim, é neste tipo de cidade que queremos viver. E é claro que Hanôver não é a única, graças a Deus! Há dezenas ou até centenas assim no mundo. E estaremos vivendo nelas. E lutando para que as cidades e países sitiados pelo ódio sejam libertados dele em algum momento.
Neste mesmo país no qual me encontro, há pouco tempo, os nazistas queimaram milhares de livros e chamaram a Arte moderna de “degenerada”, afirmando que esta destruiria os “puros valores alemães”. Como o mundo dá voltas, não? Hoje os acusadores dos “degenerados” e “protetores” dos “puros valores” estão no Brasil. E os Museus vivos e cheios de crianças estão na Alemanha. Triste.
Enfim, não pretendo me estender mais. Só quis relatar ao leitor as impagáveis experiências que o mundo da Arte nos oferece. Mas para que este mundo possa existir, é necessário um ambiente que o produza e não o oposto. O Brasil de hoje, guiado pelos pais do ódio institucional e seus apaixonados seguidores, escancara a mais desnuda face do retrocesso social, comunitário e humano. Mas amigos, não percamos as esperanças e o desejo de ver um Brasil livre de fundamentalismo político-religioso, de censura e da mais nociva ignorância, e sim repleto de Museus onde crianças aprendam desde a tenra idade que nada é mais precioso do que liberdade de se expressar e de lutar por o que é justo e digno a todos.
Jean Goldenbaum é compositor, musicólogo e ativista social e político. Pesquisador do ‘Centro Europeu de Música Judaica’ da ‘Universidade de Música de Hanôver’, Alemanha; membro do grupo brasileiro ‘Resistência Democrática Judaica’ e da coordenação do ‘Observatório Judaico dos Direitos Humanos do Brasil’
(Fotos de Jean Goldenbaum)
Belíssimo texto Jean