É preciso entender que por trás da concepção de globalização se esconde, na verdade, o mesmo velho e perverso processo de colonização, só que com nova roupagem, envelopado em um discurso contemporâneo e mais palatável. A moderna globalização de hoje é a velha colonização de outrora, agora repaginada. A dinâmica da globalização nunca pretendeu, de fato, promover um movimento de troca, intercâmbio e intersecção cultural. Desde sempre e perversamente, vislumbrou impor a hegemonia político-econômica e a padronização de comportamentos, a partir da imposição de um único modelo e referência culturais: a sociedade capitalista de consumo. A partir do capitalismo de mercado, este movimento tem sido devastador, tanto social quanto ambientalmente.
A empresa colonial fez da religião seu instrumento ideológico principal para melhor curvar, submeter e dominar tanto o espírito quanto o corpo daqueles que eram chamados de indígenas. Com o discurso de salvar a alma, as metrópoles imperialistas impuseram o domínio mais brutal sobre os corpos, até o limite da escravidão. Por meio da negação e destruição de símbolos e representações de mundo, fazendo também uso da mais extrema violência, o projeto colonizador avançou, buscando produzir corpos e mentes dóceis e domesticados, aniquilando toda e qualquer perspectiva de resistência, seja no campo simbólico-cultural ou mesmo no âmbito político. Essa estratégia de dominação se repetiu tanto na África quanto nas Américas, lá em Moçambique e aqui no Brasil.
Sob o véu da globalização, o projeto colonialista tem se reinventado em suas formas de invasão, domínio, exploração e extermínio, mas a religião continua ocupando um lugar central na expansão colonial globalizante. O discurso meritocrático, fortemente difundido pelos chamados coachs – os treinadores do capital –, também se constitui como linha auxiliar no constante processo de dominação cultural. As perspectivas teológicas da retribuição, da prosperidade e do domínio encontram eco nos treinadores do mercado, travestidos de pastores e lideranças religiosas. Em Moçambique, na capital Maputo, não é por acaso que os eventos com coachs se multiplicam, juntamente com as igrejas neopentecostais importadas inclusive do Brasil.
Como preservar a identidade cultural diante de um ataque globalizante tão intenso e devastador, que traz as promessas de uma vida feliz e cheia de possibilidades a partir do consumo? Desnecessário dizer que tal promessa não passa de quimera, pois nunca será realmente cumprida. O resultado final do processo de colonização é sempre a exploração e a miséria material e cultural. O mundo globalizado lança seus estilhaços, que representam a negação, o esvaziamento e a ruína das tradições mais genuínas. A televisão, com seu alcance de massa, é a grande porta-voz do projeto de expansão do mercado, que quer reduzir todas as sociedades à condições de meras consumidoras. Por meio da veiculação televisiva a leitura colonizada consegue adentrar na intimidade das residências, fazendo diuturnamente o convencimento das mentes, gerando um profundo mal-estar, um estranhamento, até o ponto de ruptura com a identidade cultural fundada em históricas tradições.
Os sinais e também os efeitos da globalização são bem evidentes na capital Maputo, em Moçambique. O trânsito caótico, ensurdecedor e estressante, os transeuntes expressando pressa e também cansaço – reflexo de jornadas pesadas e esgotante de trabalho -, os condomínios fechados (delineando o status social), a capacidade de se portar insensível e indiferente diante dos sinais de pobreza impostas ao outro (explicitando uma situação de grave injustiça e abandono social), o “shopping center” demarcando a padronização do consumo, a presença ostensiva do aparato policial (em um contexto de constante insegurança) e a corrupção cotidiana evidenciando o vivo espírito do capitalismo.
Mas há também em Maputo – e por toda Moçambique – os emblemas de um mundo tradicional que persiste contra todos os ataques culturais da colonialidade. As muitas línguas regionais, símbolo da identidade tribal, que resistem à imposição de um português oficial. O substrato de uma religião ancestral, na crença em um mundo regido pela magia e controlado por meio da sabedoria contida em feitiços e bençãos, suplantando a racionalidade do cristianismo e também do islamismo. A força das mulheres, com suas capulanas, tomadas por tantas cores e representações simbólicas, equilibrando bacias e baldes na cabeça. Esse equilíbrio perfeito, que remete e contempla às tramas de uma sabedoria ancestral, não deixa de demarcar o lugar de resistência das mais belas e genuínas tradições, que aparecem no território de Maputo ou mesmo em Chimoio – na verdade por toda Moçambique –, desafiando, intrepidamente, o projeto da globalização colonial na preservação da identidade, do espírito e da consciência.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em Filosofia, mestre em Ciências da Religião e professor no Instituto Federal de São Paulo, campus Piracicaba.