Memória: o que importa realmente preservar?

Memória: o que importa realmente preservar?

Num debate que cresceu muito nos últimos tempos – especialmente como reação às tentativas do governo Bolsonaro de descontruir a história, impondo uma versão falsa conforme suas conveniências políticas e ideológicas – a questão da memória tem tomado, a meu ver, alguns atalhos equivocados.

Na tentativa de preservá-la – o que realmente é fundamental – tem se misturado aquilo que é pessoal e aquilo que é coletivo. Melhor esclarecendo: há memórias – e com elas seus documentos, fotos, anotações – que efetivamente ressoam e se impõem apenas dentro do emocional de cada um. Mesmo que falem de um tempo, elas precisam ser vistas dentro do adequado prisma histórico de que, nem tudo que mexe conosco, em termos de passado, foi significativo.

Isso envolve, naturalmente, a prioridade que se dê a uns e outros projetos. À seleção do que é mais urgente e daquilo que possa ser descartado. Cartas de amor e desejo, por exemplo, falam de histórias essencialmente pessoais – embora possam revelar algo mais quando foram escritas ou recebidas por pessoas públicas. E em tempos em que o entre público e privado mais atiçam curiosidade do que se separam num acerto com a privacidade, acabam provocando mais atenção do que talvez justifiquem Documentos formais de balanços financeiros, no outro extremo, embora pareçam simples exercício de entradas e saídas, podem ser reveladores dos movimentos políticos e da manipulação social. Mas raramente são objeto do interesse devido, porque manuseá-los exige conhecimento prévio e muita paciência, entre tantos outros requisitos.

Penso em tudo isso e no quanto é difícil conduzir adequadamente movimentos de preservação – que tem inclusive movimentado Piracicaba nos últimos meses, dada inclusive a ameaça de encerramento das atividades do Centro Cultural Martha Watts, efetivamente um patrimônio de memória coletiva – ao terminar de ler o livro “Cartas de Paris – notícias do Brasil”, de Eduardo Muylaert, que foi secretário da Justiça e Segurança de São Paulo no governo Franco Montoro. 50 anos depois de serem trocadas, quando Muylaert ainda era um estudante de graduação em Direito em Paris, as cartas familiares e de amigos, ainda preservadas quase que por acaso, foram reunidas dentro de uma lógica impecável de poderem explicar determinado período da ditadura militar. Sem se constituir em livro de memórias ou de história, a publicação acerta no tom, especialmente pelas explicações que o autor dá a fatos que sem elas não poderiam ser entendidos pelo leitor, complementando-se o que está nas cartas. Especialmente aquelas escritas pelo avô, que em pleno período de censura e cuidados com os militares, consegue vazar em seus relatos o que acontecia no Brasil. E não apenas no governo e na política, mas até no futebol.

Preservação de documentos, de informações, de fotos, só tem sentido nesta perspectiva. Quando o que há de pessoal possa se fazer instrumento para entendimento do macro e não apenas de um universo pessoal específico. Isso demanda, mais do que apenas locais e condições de preservação, profissionais que percebam essa dimensão, que se envolvam em identificações, acréscimos, análises. Do contrário torna-se apenas esforço perdido para encher arquivos, estantes e espaços que um dia, inevitavelmente, acabarão sendo esvaziados por gerações futuras, incapazes de entender porque tudo aquilo mobilizou tanta gente e tanto esforço. Se não forem perdidos, antes, pelo efeito do pó, das traças, do desgaste do tempo, porque pouco interessaram a um grupo maior do que os poucos pesquisadores que continuam em busca de histórias que por vezes não passam de pequenas estórias.


Beatriz Vicentini é jornalista.

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