Memória, história e esquecimento: o ocaso dos acervos do Martha Watts, da EMPEM e do Taquaral

Memória, história e esquecimento: o ocaso dos acervos do Martha Watts, da EMPEM e do Taquaral

Não à toa, o título deste editorial remete a um dos mais celebrados livros do filósofo francês Paul Ricouer – cujo título original é “La mémoire, l’ histoire, l’oubli (com tradução para o português publicada pela Editora da Unicamp, em 2007). Todavia, e é bom que se diga logo, a intenção deste editorial – ao menos em primeiro plano – não é discorrer sobre conceitos fenomenológicos, epistemológicos ou hermenêuticos (e basta de academicismo por aqui), mas sim chamar a atenção para o fato de que, à beira do abismo, toda a memória e a história acumuladas por décadas (no caso do Martha Watts, por séculos) no campus Taquaral, no Centro Cultural Martha Watts e mesmo na Escola de Música Maestro Ernst Mahle – instituições metodistas – estão correndo o risco de caírem para todo sempre no mais absoluto esquecimento.

Decorrentes de uma crise financeira que nem o mais devoto metodista acredita poder (mesmo por milagre) ser sanada – e não nos cabe aqui, neste momento, discutirmos a origem dessa derrocada ou apontarmos culpados –  fato é que a provável falência da outrora chamada Rede Metodista coloca o Martha Watts, o Taquaral e a EMPEM – essas imensas referências culturais nacionais e internacionais – prontas para serem utilizadas imediatamente como pagamento de débitos rescisórios e outros a serem quitados via justiça. A bem da verdade, não é preciso nem se esperar a falência definitiva (e lamentável sob todos os aspectos) para que a devassa ocorra – uma vez que esses prédios já aparecem listados nos processos da recuperação judicial, ainda em voga, da instituição – o que, claro, coloca em risco imediato os acervos que nessas instituições sem encontram.

Para além do imbróglio financeiro (e agora voltamos um pouco a Paul Ricouer), a pergunta que nos cabe é: por onde anda o que o filósofo chamou de “política da justa memória”? Quer dizer: quem de fato em Piracicaba – entre gregos e troianos – está preocupado com o desaparecimento desses centros de história, cultura e memória (e de todo o ACERVO  neles depositados)? É fato que, humanos que somos, o esquecimento é da nossa condição – como também nos aponta Ricouer. Mas e os prédios? E os ACERVOS? Ora. É da condição humana permitirmos conscientemente que o registro da nossa história – da história de nossa cidade, de nossa gente, de nossa cultura – vire moeda de troca ou desapareça? Estará a demência de nossa cidade tão antecipada assim do ponto de vista civilizatório?

Em relação ao acervo do Martha Watts, é importante ler o que a jornalista Beatriz Vicentini registra em postagem feita por ela em sua página pessoal no Facebook no último dia 4. Diz a jornalista:

Com a UNIMEP envolvida num processo de recuperação judicial, com a falência já solicitada, caso seja homologada pelo juiz será que Piracicaba já entendeu que poderá perder o Centro Cultural Martha Watts, que, integrando a massa falida, poderá ser vendido a qualquer um, desde uma empresa que queira ali montar um shopping como a um investidor que faça do local o que bem pretender? E ainda que a falência não seja decretada, pesa sobre o prédio sua tomada por bancos credores da rede metodista como garantia de empréstimos contraídos.

 

O Martha Watts, para além de seus espaços que recompuseram a história do Colégio Piracicabano, responde por acervos que lhe foram entregues e que são referenciais para a história da cidade, como do jornalista Rocha Netto – considerado dos maiores arquivos de esporte do país, do folclorista e ativista cultural João Chiarini, do jornal O Diário, entre outros. E um arquivo fotográfico que registra décadas de história de Piracicaba. devidamente tratado e durante muito tempo preservado. No campus centro ainda se concentram arquivos colocados sob guarda da UNIMEP pelo Tribunal de Justiça de SP, reunindo 13.407 processos da comarca entre 1801 e 1946, relacionados a fatos de Piracicaba e cidades como Limeira, Santa Bárbara d´Oeste, Rio das Pedras, Capivari, Rio Claro, São Pedro, Valinhos e Campinas. Ao longo dos anos, dezenas de artistas puderam expor suas obras, lançar livros, promover eventos naquele espaço. Que fim poderão ter? (…) Ver prédios históricos como do Centro Cultural Martha Watts praticamente irem se acabando coloca Piracicaba apenas dentro do mapa de completa falta de visão das autoridades quanto à história e à memória, seja memória local, seja memória do país. Depois que não houver mais o que salvar, ou que restar muito pouco do que já se havia recuperado, não vai adiantar lamentar – sejam lamentos metodistas, sejam lamentos da própria Piracicaba e de seus governantes.(Vale conferir a postagem completa em:https://www.facebook.com/behelias/posts/pfbid0QCGuKoEXHeKeWm9m3RM75uDTUd3ztX7LwZ76KcVrprQAAcan37nPrByAYWdMnJ65l ).

Se para lembrarmos é preciso primeiro esquecer – como afirma Paul Ricouer no livro citado – que o esquecimento a que já estão submetidos esses acervos nos seja matéria de imediata recordação e preocupação. Piracicaba precisa discutir com a máxima urgência o que fazer com a história acumulada nessas instituições em seus respectivos acervos, antes que não haja mais condições de recobrarmos dele (e de toda a memória neles presente) um mísero fio de lembrança.

—————————————————————————————————————————————–
(Foto de capa: divulgação/Fábio Martins/CCMW)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *