Cansado, Noel diz em carta aberta que não entregará presentes de Natal este ano. Leia aqui seus motivos na íntegra.
“Comunico, aos interessados, que, pela primeira vez em muitos anos, não entregarei presente de Natal este ano. Lamento, mas não peço desculpas. Não tomo esta decisão com leviandade. Há dias, matuto a ideia em longas caminhadas pelas ruas geladas e pelos fiordes escuros de Tromsø, no norte da Noruega. Por meio desta carta, gostaria de explicar meus motivos.
Eu fui diagnosticado com Burnout, acho que essa é a nomenclatura científica. Uma espécie de cansaço e cobrança acumulados, em uma rotina que nunca para de exigir, até nos esgotar fisicamente e emocionalmente.
De fato, eu estou me sentindo bastante cansado, desmotivado, com pitadas agudas de enlouquecimento. Por mais de uma vez, peguei-me com as mãos em meus cabelos arrepiados, quase que tentando arrancá-los.
Não sei, porém, se Burnout é a descrição mais adequada do meu caso. Eu preciso de uma pausa para cuidar da minha saúde mental, mas o que está me enlouquecendo não é exatamente o trabalho ou a rotina. Vocês sabem que não sou eu que fisicamente entrego os presentes. Eu não existo–quer dizer, eu existo, eu penso e tudo, mas minha existência é intersubjetiva. Eu existo na cabeça de vocês.
Permita-me, portanto, ser direto. Esse é o problema: vocês. Eu não sei o que vocês querem de mim!
Eu já vivi muito natais. Em alguns, vocês foram mais generosos; em outros, vocês foram menos. Em alguns, eu presentei todas as crianças. O presente era uma graça de graça, e eu sorria com elas. Em outros, eu presentei apenas as crianças que mereciam. Dei casca de banana para os demais e risada quando eles caiam. Afinal, era merecido.
Não sei se eu tenho uma preferência por uma ou pela outra opção–pelo presente como graça ou merecimento. O que me enlouquece são as demandas contraditórias que vocês me colocam.
Eu, inclusive, já entreguei presentes durante o regime nazista. Atesto que o resultado desta proposta, de regular presentes e recompensar crianças submissas, não foi muito bonito. Mas, pelo menos, minha tarefa era relativamente clara. Eu sabia o que vocês esperavam de mim.
Há algumas décadas, entretanto, sinto que o impasse se agravou. A situação está pior do que na reforma protestante. É como se vocês cobrassem de mim a capacidade de fazer dois objetos ocuparem o mesmo espaço, ao mesmo tempo. Querer que o presente seja uma graça de graça, e, simultaneamente, recompensa, não faz sentido. Isso é uma loucura e está me enlouquecendo.
Eu não faço milagre. Eu sou o Papai Noel, mas não faço milagre.
Quando vocês me dizem, vai lá, Papai Noel, presenteia a humanidade – tem presente pra todo mundo! Eu vou lá, dou presente pra todo mundo. Quer dizer, vocês se presenteiam, afinal, eu existo na cabeça de vocês. Mas o importante é que funciona e explicarei como:
Sabe aquela sensação de que o prazer estar em dar, mas a gente invariavelmente também recebe de volta? É exatamente assim que funciona a dignidade. O presente de Natal como graça de graça é, justamente, essa prática em que as pessoas se presenteiam mutuamente dignidade.
A lógica natalina da dignidade é antieconômica: quando você presenteia outros, você não fica com menos, você fica com mais. Você se sente abundante. E isso ocorre porque você não apenas recebe o outro como um presente, mas também a si mesmo. Você se recebe como um presente.
Ah, sabe aquela sensação que vocês têm, às vezes, quando de fato o que importa é a troca e não o valor monetário do presente? Claro, é importante que os presentes sejam diferentes, senão não tem graça, mas o preço em si, como medida, perde o sentido. Então?! Isso é precisamente a descrição de como a dignidade funciona.
A dignidade, por definição, tem sempre o mesmo valor–não tem proporção. Porém, ela só faz sentido porque as pessoas que se presenteiam, mutuamente, a si mesmas, são diferentes. A dignidade, em outras palavras, é a antimedida que destrói as escalas e permite a alegria em ser como somos.
Mas, poxa vida, aí, vocês vêm, ao mesmo tempo, e me dizem, mas só pode dar presente para as crianças que mereceram, hein. E, ok, se vocês soubessem que é isso que vocês querem, ok–eu me mantenho agnóstico.
Lá vou eu, novamente, tento compreender o que vocês entendem por merecimento: crianças comportadas, obedientes, submissas? Mas crianças comportadas demais não necessariamente tornam-se adultos de sucesso, como vocês tanto se preocupam.
Quem é que merece, então? Qual o critério, qual a medida, qual a escala correta? Eu refleti muito sobre isso, e cheguei à conclusão de que a única opção seria criar um teste arbitrário, uma prova padrão: quem for melhor nessa prova, merece, quem for pior, se ferrou! Hohoho.
Poderíamos, claro, segmentar a prova por faixas etárias. Tipo, criança com até um ano de idade só ganhariam presentes se chorassem menos que uma hora por dia. Se chorar mais, trouxa, fica sem presente! Hohoho.
Vamos fazer assim, então? Eu topo–até me divertiria com o sofrimento alheio, em ver vocês tentando vencer essas provas. Afinal, embora a imposição desse tipo de sofrimento seja arbitrária, o sofrimento não deixa de ser merecido, certo? É exatamente isso que acabamos de decidir. Então, sofram meus amigos humanos, sofram. A vida estava fácil demais… hoho…
Por mim, tudo bem.
Só que aí, começam as músicas de Natal. Vocês se põem a cantar e falar de um tal de espírito natalino. Nas letras, vocês trocam merecimento arbitrário pela graça de graça, porém, sem nem mesmo perder o fôlego, vocês novamente os destrocam. Isso dá um nó na minha cabeça.
Eu já vivi muitos natais; alguns, foram mais generosos, outros, menos. Porém, eu nunca vivi esse nível de loucura coletiva, em querer fazer dois objetos ocuparem o mesmo espaço, ao mesmo tempo.
Vocês que sabem!
Decidam o que vocês querem: troca de dignidade ou provas arbitrárias de “merecimento”. Enquanto vocês não decidem, me esqueçam! Eu ficarei aqui por Tromsø, caminhando pelos fiordes nevados e andando de trenó.
Noel.”
Tiago C. Lazier, cientista político, é membro da rede Acampa Brasil pela a Paz e o Direito a Refúgio e diretor de projetos e programas do Instituto Piracicabano de Estudos e Defesa da Democracia (IPEDD).