Materialismo de mercado e espiritualidade

Materialismo de mercado e espiritualidade

Marx

Nenhum servo pode servir a dois senhores: ou há de odiar a um e amar o outro, ou há de aderir a um e desprezar o outro. Não podeis servir a Deus e ao dinheiro. (Lc 16,13)

Tudo que é sólido desmancha-se no ar.
Karl Marx, A Ideologia Alemã.

A dinâmica do materialismo segue um fluxo perverso, a destruir tradições, concepções de vida, ritualidades, experiências espirituais e místicas, referências religiosas. Sob o auspício do materialismo, tudo se desfaz, se dissolve, se liquefaz. A perspectiva materialista conduz (reduz) tudo à esfera do consumo, do conforto, do imediato, do que é meramente supérfluo, concebendo a vida e seus propósitos de maneira estreita, limitada, superficial.

A ideologia materialista avança, galgando os espaços mais inusitados, inclusive no campo religioso. O domínio, a rendição ao materialismo acontece tanto no universo simbólico quanto na dimensão concreta, no âmbito das decisões duras, reais.
No contexto das representações simbólicas, há todo um jogo de linguagem, impondo, de maneira sutil, a rendição à lógica do que é meramente material, mercadológico. Expressões de marketing sugestionando o sucesso, a competição, o estar na frente, elevando, inclusive, a própria ambição à categoria de valor, evidenciam o esgarçamento de uma identidade que se apresentava como perene, herdeira da mais legítima tradição espiritual. As palavras passam então a explicitar a adesão a uma outra visão de mundo, que não guarda relação alguma com a dimensão religiosa.

pósmodernaA linguagem denuncia e desvela a compreensão, leitura de mundo que efetivamente se manifesta na dinâmica das relações objetivas, reais, concretas. O valor absoluto esgota-se na busca pela maior lucratividade. O que está em pauta é tão somente o retorno financeiro e nada mais. Não há pessoas, não há tradição, não há legado espiritual, não há projeto maior, não há identidade religiosa. A suma referência passa a ser o mercado e suas promessas de retorno econômico.

Algumas igrejas assumem, de maneira tácita, a ideologia materialista, abraçando a perspectiva da retribuição e prosperidade como o fim último, a meta de todo o envolvimento religioso. Perdendo sua dimensão de caminho transcendental, a experiência religiosa acaba sendo reduzida, corrompida, compondo-se então como mera via para o desenvolvimento material, para o acúmulo de bens, para o sucesso individual. Sob a égide da retribuição e prosperidade, o horizonte da transcendência se esvai, a própria religião perde seu caráter de religar o humano com o sagrado. Tudo se reduz ao pseudo milagre da multiplicação dos bens, do acesso, da adesão às benesses de uma vida de consumo.

Outras instituições, também religiosas, acabam por aderirem ao ideário de mercado de maneira mais dissimulada, buscando camuflar, por meio de discursos técnicos e ações burocraticamente estratégicas, a traição aos mais profundos, genuínos e autênticos princípios, a apontarem o absoluto da transcendência. Tais instituições instrumentalizam a tradição religiosa – a qual seriam supostamente herdeiras. Na essência atuam simplesmente em conformidade com as leis do mercado.

ImagemNeste contexto, espiritualidade, tradição, ritualidade, identidade religiosa se tornam pura abstração, na medida em que não incidem na vida, nem como representação simbólica, nem como referência prática. A espiritualidade revela um traço essencial do humano. Negar tal dimensão significa também não viver a plenitude da própria humanidade. O olhar para a transcendência cadencia uma dinâmica de relações muito diversa aos apelos e definições próprias de um materialismo que é sempre reducionista, a empobrecer todo horizonte existencial.

A negação da dimensão da transcendência pode conduzir ao embotamento existencial. Neste ponto, a abertura para a espiritualidade possibilita que o humano se lance em busca de experiências mais profundas e autênticas, a apontarem para o sentido maior que a vida pode alcançar. Carente torna-se a humanidade quando suas instituições mais sagradas estão totalmente entregues aos ditames do materialismo de mercado. O lócus do desprendimento, o lugar primeiro da acolhida, da transcendência, do amor – o espaço das vivências religiosas, mais íntimas – desgarre-se de seu propósito em tornar o homem livre e feliz. Instituições religiosas que não cuidam mais de suas ovelhas, ocupam-se muito possivelmente dos dividendos do dia.

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Adelino Francisco de Oliveira é pós-doutorando pelo Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq/USP.

10 thoughts on “Materialismo de mercado e espiritualidade

  1. Pois é! É uma pena que tudo o que você diz seja verdade. A clínica psicológica está repleta de pessoas desbussoladas em seu existir! Há um vazio existencial que não é preenchido (e nem sei se vai ser) pelo consumo angustiante e desenfreado: é igual a fogo de palha, sensações momentâneas de prazer e “felicidade”. Percebe-se que o espiritual só é buscado ou lembrado quando as coisas pioram (ou a sensação de que elas pioram). E, sendo redundante, pior fica quando as instituições religiosas e/ou seus líderes, como você bem coloca, “na essência atuam simplesmente em conformidade com as leis do mercado”. Dinate dessa situação, onde procurar refúgio, consolo, abrigo, proteção, compreensão do seu existir humano-espiritual? Nos consultórios médicos, psicológicos, em rituais mágicos, nas compras em shoppings centers? Vamos ver até ondo aguentamos, até ondo caminhamos como humanidade…
    Abração

  2. Estimado Xavier,

    Obrigado pela interlocução qualificada. Sua reflexão amplia e aprofunda o tema proposto. Talvez só nos resta mesmo os terapeutas, a assumirem a perspectiva de trabalhar a dimensão da interioridade.

    Receba meus melhores cumprimentos

  3. PREZADO ADELINO, VOCÊ FOI FELIZ EM SEU ESCRITO AO CARACTERIZAR O VAZIO DA NOSSA SOCIEDADE, QUE PASSA TAMBÉM PELA EXPERIÊNCIA RELIGIOSA. A DINÂMICA CAPITALISTA DESTRÓI TUDO, TUDO É COMERCIALIZÁVEL, INCLUSIVE OS “OBJETOS” DA FÉ. COMO DIZIA UM PROFESSOR MEU HÁ MUITO TEMPO: “O DINHEIRO COMPRA TUDO, INCLUSIVE A DIGNIDADE DAS PESSOAS.” ACRESCENTARIA: “…INCLUSIVE A FÉ DAS PESSOAS.” VIVA A RELIGIÃO(ZINHA) DA AUTOAJUDA, DA ACUMULAÇÃO A TODO CUSTO, DO “SEJA FELIZ DE QUALQUER MANEIRA, JESUS AMA VOCÊ”! MINHAS CORDIAIS SAUDAÇÕES.

  4. Prezado Renato,

    Agradeço por suas ponderações, contribuições, que são mesmo críticas, profundas, problematizadoras. O tema é desafiador e urgente.

    Esteja bem!

  5. Professor,
    Parabéns por seu texto. Fez bem em levantar esse assunto com o natal já tão próximo. As pessoas acabam esquecendo o motivo real desta data e buscam realizar compras desenfreadas para suprirem o vazio que sentem. Isso acontece principalmente com as crianças, que não tendo total atenção dos pais, acabam sendo conquistadas pelos atrativos que milhares de lojas propagam.

  6. Querida Lucila,
    Estimo que esteja bem!
    Agradeço por seu comentário, apropriado e relevante. De fato, o materialismo conduz a um consumismo desprovido de maior sentido.
    Receba meus cordiais cumprimentos,

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