A África é mesmo um continente revestido de profunda e autêntica mística. Berço da própria humanidade e de culturas mais que milenares, o território africano contempla muitos símbolos, emblemas e sinais que pedem uma hermenêutica mais atenta e profunda para ser compreendido em toda sua força, sentido, fecundidade e beleza. Não há dúvida de que a humanidade deve muito à África, mesmo que ainda não consiga reconhecer e lhe dar total centralidade.
Em Maputo, capital política e financeira de Moçambique, na dinâmica do projeto Afro-IF Articulando Saberes – do Núcleo de Estudos Afro-brasileiro e Indígena (Neabi), do Instituto Federal de São Paulo – tivemos a rara oportunidade de experienciar um pouco do cotidiano dos moçambicanos, mergulhando em uma cultura que guarda uma sabedoria que tem muito o que ensinar ao mundo. Por intermédio das irmãs salvatorianas, que atuam na cidade de Chimoio, em Moçambique, o Neabi-IFSP passou a estabelecer contato e construir parceria acadêmica com docentes da Universidade de Púnguè.
Pensado e acalentado por alguns anos, a implementação do Projeto em terras moçambicanos tornou-se viável apenas a partir do aporte da Deputada Federal Luiza Erundina, do PSOL. O apoio da deputada significou um reconhecimento profundo da inciativa que teve como objetivo nos aproximar de um conhecimento único em torno de nossa ancestralidade e de todo o elemento cultural que pode compor nossa memória afetiva.
Para além de sua dimensão mais urbana e moderna, a evidenciar todos os problemas decorrentes do processo de ocidentalização porque passam os países periféricos do capitalismo, há em Maputo uma representação latente da vida, talvez uma memória cultural, que ainda remonta a uma genuína experiência comunitário tribal. Mesmo no anonimato de uma grande cidade como Maputo, essa memória coletiva se manifesta e é explícitada também nos sobrenomes, que podem remetera a origens étnicas bem remotas. Cada sobrenome revela a região e o grupo étnico da pessoa, delineando seus vínculos familiares e pertencimento comunitário. Em Maputo pude conversar com alguns jovens, sempre com viva curiosidade e atenção aos seus nomes de família. Aprendi, por exemplo, que o sobrenome Zimba vem da província de Gaza, já os apelidos (para usar a expressão própria de Maputo) Chuquela e Fondo, são originários da providência de Inhambane.
A jovem Zimba, muito entusiasta de seus saberes ancestrais, passou a me ensinar que há uma língua, a swahili, que poderia conectar toda a África. A cidade de Maputo localiza-se na região sul de Moçambique, onde parcela expressiva da população fala a língua changana. Em muitas conversas entre amigos o moçambicano troca o português pelo dialeto changana. Em alguns diálogos, que tive a oportunidade de presenciar nas ruas, ambos idiomas chegam a aparecerem misturados, em uma comunicação muito viva, íntima e espontânea.
A jovem Zimba enfatizou que a cultura do bem-viver, demarcando o sentido da vida, seria o novo grande legado da África para se restaurar a dinâmica das relações em um mundo deformado e perdido na materialidade. Tendo a cultura do bem-viver como referência, a grande África talvez esteja apontando o caminho para que a humanidade se reencontre com a potência que é a vida. Ouvindo atentamente Zimba lembrei-me da concepção de bem-viver dos povos ameríndios. Comentei com Zimba como é interessante que a esperança esteja justamente nos povos que o Ocidente insiste em invisibilizar e negar!
O olhar múltiplo, aberto, crítico e diverso em torno da África é capaz de nos conceder uma experiência ou um espaço único, exclusivo, a nos levar para parte significativa da história de nossa humanidade, de nossa identidade. É como se aqui, em Moçambique, reconhecêssemos um pouco de nós, de nossa musicalidade, culinária, leitura de mundo, filosofia, generosidade, nossos hábitos, de nossa consciência. Estar na mãe África, a ancestralidade nos diz muito, nos traz conforto, pertencimento. É como se resgatássemos o que foi negado ao povo preto no Brasil durante anos e séculos: o seu lugar, a sua relevância na construção da cultura e no processo civilizatório, humanizando comportamentos, costumes e saberes.
Adelino Francisco de Oliveira é doutor em filosofia, mestre em Ciências da Religião e professor no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus Piracicaba.
(Fotos do autor).
Muito interessante!
Realmente, a mãe África tem muito a nos ensinar.
Excelente trabalho, Professor Adelino!
Um abraço
Excelente!