Manhã de carnaval – por Alê Bragion

Manhã de carnaval – por Alê Bragion

A carnaval

Manhã, tão bonita manhã
Na vida, uma nova canção
Cantando só teus olhos
Teu riso, tuas mãos
Pois há de haver um dia
Em que virás

Das cordas do meu violão
Que só teu amor procurou
Vem uma voz
Falar dos beijos perdidos
Nos lábios teus

Canta o meu coração
Alegria voltou
Tão feliz a manhã
Deste amor.

(Luiz Bonfá)

Confesso – no presente do indicativo: eu adoro o carnaval. Não há como negar. Canta o meu coração. A alegria voltou. E poucas coisas me parecem tão líricas e tão tocantes como a manhã de carnaval. Em especial, a manhã de seu sábado. Posso dizer, mesmo, que as manhãs de sábado de carnaval me emocionam como o quê. Aliás, com o tempo estampado em minha calvície e a velhice antecipada de meus 38 anos revelando-se a cada letra desta crônica, confesso ainda – e também – que o sábado de carnaval já me brota na mente como algo nostálgico que não sei definir muito bem. Talvez, lá no inconsciente freudiano das minhas sensações, o desejo de reviver os carnavais de minha infância em família sustente o lirismo que vejo na alegria (quase obrigatória, quase compulsória) de se viver a folia de momo. Talvez. Ou talvez também esse meu amor (até então secreto) pelo carnaval nasça do desejo clichê de se viver em 4 dias a fantasia, o desejo e ilusão da plenitude do existir em sua completude de esperança e bem-querer.

Confesso. O ar matinal dos sábados carnavalescos de outrora ainda vive em mim. Lembro-me da alegria muitas vezes velada das pessoas de minha casa. Da alegria meramente mundana e extremamente discreta dos meus pais, de alguns vizinhos e de meus irmãos. Em Piracicaba, o carnaval abria-se nesses tempos com a inigualável “Banda do Bule.” Poucas coisas na cultura popular piracicabana conseguiram se aproximar da atmosfera ingênua, brincalhona e deliciosa dos animados foliões dessa intrépida “Banda” (composta quase totalmente por homens) – que nas manhãs de sábado de carnaval invadiam a Rua Governador – a principal rua do comércio da cidade – travestidos (jocosamente) de mulher. Quanta graça. Por baixo das saias rodadas, os brincalhões escondiam inevitavelmente – à moda do Vadinho, em “Dona Flor e Seus Dois maridos” – uma imensa mandioca fálica, esculpida e pintada a fim de representar um enorme pênis. Era um barato! Livres do preconceito politicamente correto da sociedade eufemística de hoje, esses foliões, homens em sua formação (ao menos genética), corriam atrás dos cidadãos comuns que transitavam apressadamente pela Governador. Que alegria! Não havia maldade. Não havia olhares moralistas ou preconceituosos. Os foliões beijavam, à revelia dos que assistiam a festa, os homens “sérios” que pela rua eram, por um motivo ou outro, obrigados a transitar. Beijos, apertos e risos. Tudo motivado, apenas, pelo intuito risonho da provocação. E isso era o máximo!

A banda do buleConfesso. Numa dessas manhãs de sábado e alegria, meu pai – que em sua autoridade professoral subia à rua Governador, vindo do Mercado Municipal, caminhava em direção à nossa casa, – foi alvo de uma saraivada dessas beijocas masculinas, borradas de um arlequinal batom vermelho e úmidas de um hálito de cerveja e cachaça. Em casa, ríamos em coro da inusitada explosão do inusitado. E vimos, felizes, que a reação de meu pai fora a de, constrangidamente, rir da festa singela presentificada na irreverência dos que, naquela manhã, dançavam e cantavam a alegria de viver – mesmo que vivêssemos ainda os tempos duros de um estado de exceção militar e ditatorial. Confesso. Aberto o Carnaval na cidade e passada a “Banda do Bule,” eu corria para a estante do escritório de meu pai e surrupiava dali, secretamente, algum livro de Jorge Amado – de preferência algum que tratasse da cidade de Salvador e do espírito em alto relevo do carnaval baiano. [E foi numa dessas manhãs que li, justamente, a história de Flor e Vadinho – malandro baiano que, no romance de Jorge, morre exatamentemente numa manhã de carnaval, travestido de mulher (e deixando aparecer, por debaixo da saia falsa, uma gigantesca mandioca peniana pintada de vermelho!)].

Confesso. Poucas vezes, bem poucas, deixei de assistir – nas ruas ou na televisão – os desfiles das escolas de samba de Piracicaba, de São Paulo e, principalmente, do Rio. Confesso. Ainda hoje cruzo as madrugadas de carnaval, mesmo que às vezes solitariamente, colado à tela da TV, atento ao enredo, às mulheres com samba no pé e ao ritmo genial das baterias. Confesso. O carnaval reúne elementos dos mais interessantes e aos quais reverencio com singular generosidade: a beleza feminina, o ritmo afro, o som dos tambores, afoxés, agogôs e cuícas. Confesso. Não há como não se deixar contagiar pela bateria de uma grande escola de samba, a usina de som que produz a alegria mais pura e mais doce que toca o coração de nosso povo. Sim. O carnaval é a festa do povo brasileiro – apesar de, hoje, padecer da má influência dos boyzinhos e playboyzinhos da burguesia. Confesso. Não fosse a idade e a minha recusa em presenciar os extremos da bebida, do álcool e da violência (e dos assaltos em massa) e eu certamente ainda me lançaria às ruas, vendo e vivendo de longe a festa que – queiramos ou não – mais nos representa. Não há Brasil sem carnaval. Ou melhor: o Brasil é, em mais de um sentido, um triste carnaval.

Confesso. Agora é hora de correr para a estante (não mais a de meu pai, infelizmente, mas a minha própria) e de lá surripiar um livro de Jorge Amado. Nem que seja para reviver, ao som de umas marchinhas gravadas em CDs, o carnaval de tempos que, carnavalescamente, não voltam mais. Confesso. Agora é hora de vivermos as alegorias que nos iludem a crer que a vida, advinda das cordas de um violão, pode por no mundo uma mais linda e mais nova canção.
Bom carnaval.

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Alexandre_-_JP_-_21dez08[1]

Alê Bragion é editor do Diário do Engenho.

(fotos extraídas do site: acervoshistoricos.blogspot.com)

3 thoughts on “Manhã de carnaval – por Alê Bragion

  1. Alê, gostei muito da sua crônica e pude ver também a Banda do bule na Governador agora, explicitamente alegre e sem censura, brincalhona e displicente. Eu carnavalizo. Confesso, vejo poesia e beleza nas alegorias e brilho das avenidas tomadas pela massa… Essa massa sofrida, espremida pelas consequências da corrupção,.. Sem tanta coisa que sustente a dignidade! Mas, com uma fé inabalável… Com relação ao ópio que representa também esta festa, bem isso já é assunto para outro dia, para quando a rotina voltar a nos acordar deste colorido escolhido, sonhado e desejado de carvanalizar a vida.

  2. Você narrou um ponto de vista interessante.Porém eu passo;dos carnavais eu lembro que visitava o saudoso Círculo do Livro na rua Prudente,adquiria dois exemplares.Nesse ponto comungamos idéias,carnaval para mim é tempo de leitura e cachimbo.
    Fraterno abraço.
    Erico

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